Preconceito

Autoextermínio é até 7 vezes mais comum entre LGBTQI+

Pesquisadores explicam que preconceito, opressão e ofensas funcionam como uma carga extra para acentuar a depressão

PUBLICADO EM 13/09/21 - 03h02

“A ideia de não ser aceito pela minha família e pela sociedade me abalava muito e contribuía para que minha vontade de viver fosse pouca”. O relato é de um jovem gay e exemplifica como a taxa de suicídio entre pessoas LGBTI+ pode ser até sete vezes maior do que no restante da população. O breve depoimento do rapaz integra um estudo feito pelo pesquisador Thiago Nagafuchi, doutor em ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), que analisou  trabalhos publicados em diversos países que detalham essa maior incidência do autoextermínio entre LGBTI+.

Um desses estudos, feito pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, indica que jovens gays, lésbicas ou bissexuais têm quase cinco vezes mais chances de tentar o suicídio em comparação com os heterossexuais. Entretanto, esse índice pode chegar a sete vezes, conforme pesquisas também citadas no estudo de Nagafuchi.

Para esses estudiosos, não é que ser LGBTI+ seja um caminho definitivo em direção à depressão e a outros sofrimentos mentais, mas a identidade de gênero ou sexual fora de padrões considerados tradicionais pode se desdobrar em situações de preconceito, opressão e ofensas. “O suicídio envolve questões multifatoriais, é uma miríade de coisas. Existem sofrimentos a que todo mundo está sujeito, mas as questões vindas dos LGBTs são uma carga extra e trazem LGBTfobia”, diz Nagafuchi.

Entre avanços e retrocessos nos últimos tempos, essas marcas do preconceito insistem em não desaparecer. Os relatos colhidos pelo pesquisador demonstram que as aflições de pessoas jovens e mais maduras muitas vezes comungam do mesmo caminho. “A homofobia destruiu a minha vida, me causando desde a adolescência uma séria fobia social. O que me mantém vivo são os antidepressivos”, disse um homem gay na faixa dos 50 anos. Mais jovem, uma lésbica de vinte e poucos anos desabafou: “Esse conjunto de situações reduziu e ainda reduz muito a minha autoestima e a minha vontade de continuar vivendo em uma sociedade tão preconceituosa”. Os participantes do estudo pediram anonimato ao pesquisador.

Os depoimentos são de antes da pandemia, e a chegada da Covid pode ter produzido uma camada complementar nesse cenário sombrio. Os dados concretos sobre o efeito da pandemia no índice de suicídios somente serão levantados com clareza nos próximos anos, dizem os pesquisadores. Mas um levantamento do coletivo #VoteLGBT, feito no primeiro semestre de 2021, entrega alguns apontamentos. A queda da renda financeira atingiu mais fortemente os LGBTI+: 6 em cada 10 pessoas do segmento tiveram os rendimentos diminuídos ou ficaram sem renda por causa da Covid. Nessa faixa da população, 54,92% foram classificados com nível de depressão no patamar mais grave – quase 8% a mais do que no resultado da pesquisa feita em 2020. O levantamento online consultou 7.292 pessoas em todo o país.

Quando a abordagem afunila-se sobre transexuais, a gravidade é ainda maior. A Trevor Project, uma organização norte-americana que atua na prevenção do suicídio entre os LGBTI+, verificou que 40% dos adultos transexuais dos Estados Unidos já tentaram suicídio alguma vez, conforme levantamento feito pelo National Center for Transgender Equality.

Relatos de solidão, vulnerabilidade e ideação suicida publicados por LGBTI+ nas redes sociais também foram mapeados por Nagafuchi. “É como se a pessoa não se encaixasse no mundo. Os marcadores sociais da diferença acabam empurrando essas pessoas à margem”, conclui Nagafuchi.

Fora da caixa

“Aos 16 anos, eu sentia que era diferente de outras pessoas na escola, mas desde criança eu já notava que alguns aspectos da minha vida não estavam bem. A gente que é transexual sofre desde criança, sempre estamos fora da caixa em questão de gênero. Nem minha escola, nem meus pais entendiam sobre problemas mentais. Procurei o Caps (centro de saúde) e comecei um tratamento psicológico. Hoje, aos 22 anos, tomo antidepressivo e ansiolíticos. Eu me desentendi com minha mãe, meu padrasto chamou a polícia. Ele não me aceita, acha que transexual é prostituta e quer tirar meu irmão de 6 anos de perto de mim. Acabei presa. Foram os piores dias da minha vida e tentei suicídio na prisão. Hoje estou livre, mas ainda tenho pesadelos. Não posso ficar sem emprego, não quero entrar para a prostituição”, relata a transexual, sob anonimato.

Onda conservadora

Para encontrar um arco-íris depois dessa tempestade, ainda falta sedimentar um longo caminho. O desemprego também é maior nesse segmento da população, algo captado na pesquisa do #VoteLGBT. Enquanto o índice foi de 14,7% no primeiro trimestre na população geral, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre as pessoas LGBTI+ a taxa foi de 17,5%. Desemprego e enfraquecimento das redes de apoio são ingredientes que podem elevar os índices de adoecimento psicológico. Isso, sem considerar o tensionamento sociopolítico vivido atualmente no país, conforme lembra o doutor em ciências pela USP Thiago Nagafuchi. “Vivemos um momento difícil, de onda conservadora, então não sei se vamos conseguir avançar sobre proteção ao suicídio LGBTI+. Temos muito a caminhar ainda”, prevê.

Jovens negros são os mais afetados

De cada dez jovens entre 10 e 29 anos que se matam, seis são pretos ou pardos. Os dados são de um levantamento do Ministério da Saúde. Em uma cartilha divulgada em 2018, o próprio governo federal diz que “um dos grupos vulneráveis mais afetados pelo suicídio são os jovens e sobretudo os jovens negros, devido principalmente ao preconceito e à discriminação racial e ao racismo institucional”.

O material explica que as principais causas associadas ao suicídio em negros são o não lugar, o sentimento de inferioridade, rejeição, maus-tratos, solidão, entre outros. O governo estima que, no Brasil, entre os homens, as chances de um jovem negro cometer um suicídio são 50% maiores do que as de um branco.

Apesar da falta de estimativas mais recentes com esse recorte e até da subnotificação – já que alguns casos entram na estatística como acidentes –, especialistas no assunto reforçam que essa realidade continua a mesma que a observada há três anos. “Temos que lembrar que os jovens negros são os que mais são assassinados no Brasil. Para cada uma dessas mortes, temos o adoecimento de mulheres negras, mães dessas vítimas, que adoecem e podem, sim, chegar a se matar por isso. Temos um histórico de violências cotidianas e sensação de não pertencimento que também adoece a população negra”, diz a psicanalista Cristiane Ribeiro.

Ela aponta outra explicação: “Se pensarmos o suicídio dentro da lógica de saúde mental, temos que olhar do ponto de vista do acesso ao cuidado preventivo e tratamento. Estamos falando de uma população que tem o acesso prejudicado, porque estamos pensando em uma população com menor condição financeira de se cuidar”, afirma Cristiane.