Atrás das grades

Onda de suicídios perturba alas LGBTQI+ em penitenciária de Minas

Sete casos ocorridos na penitenciária LGBTQI+ em São Joaquim de Bicas seguem sem solução; para Defensoria Pública, houve omissão

A ex-detenta Cristina conta que o namorado entrou em depressão e cometeu suicídio na cadeia, mas ela só ficou sabendo um mês depois | Foto: Fred Magno/O TEMPO
PUBLICADO EM 16/09/21 - 03h00

Um mórbido calendário de suicídios vem sendo registrado desde o início do ano dentro de alas LGBTQI+ na Penitenciária de São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Minas Gerais. Os casos tiveram início em janeiro, quando uma pessoa tirou a própria vida. Em abril, o fato se repetiu, e foram mais dois autoextermínios em maio, outro em junho, o sexto suicídio em julho e mais um registrado no último sábado. Oficialmente ainda não se sabe o que teria levado os detentos gays, transexuais e travestis a suicidarem-se.

A Polícia Civil ainda não finalizou as investigações. Após cinco suicídios, a Defensoria Pública de Minas Gerais entrou com ação pedindo melhorias urgentes na unidade, chamada Professor Jason Soares Albergaria. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) acatou o pedido, e o governo estadual garante que está tomando medidas cabíveis. Após a ação da Defensoria, outros dois suicídios e seis tentativas de autoextermínio foram registradas. Assim que as mortes vieram à tona, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) determinou que a unidade se dedicaria exclusivamente ao público LGBTQI+. Atualmente a penitenciária abriga 396 detentos.

As mortes envolvem pessoas entre 20 e 32 anos e são acompanhadas de diversas denúncias por parte de familiares e ex-detentos. São histórias de maus-tratos, precariedade no atendimento médico, na alimentação e nas condições de higiene. Para a Defensoria Pública, houve omissão, além de suspeita de que alguns casos sejam homicídios disfarçados.

 

“Os agentes zombam da gente, nos tratam como bicho. Tenho pesadelos até hoje”, diz uma jovem transexual que ficou apenas três dias lá dentro. Para Cristina Oliveira, uma transexual que passou cerca de seis anos na penitenciária, o cotidiano de tormento resultou na morte do companheiro. Ele também estava preso e suicidou-se depois de uma suposta crise. A própria Cristina assume que já havia tentado o autoextermínio após receber a condenação de 17 anos de prisão. “A vida havia ficado pequena pra mim”, relembra.

A trajetória de Cristina no sistema prisional resume o cenário de afronta aos direitos fundamentais. Ela afirma que foi vítima de abuso sexual cometido por dez homens em outra prisão. Atualmente está em prisão domiciliar e tenta conseguir um emprego. “Meu namorado entrou em depressão na cadeia”, conta a ex-detenta. Ela soube da morte do companheiro quase um mês depois. “Eu mandava carta, e ele já estava morto. Eu ligava, e não falavam nada”, revolta-se.

O motoboy Geovane Batista felizmente escapou dessa estatística mórbida. Ao chegar a uma ala LGBTQI+, ele foi alvo de agressões verbais, além de limitações para comer, beber e tomar banho. Testemunhou o uso indiscriminado de remédios. “Me davam paracetamol e dipirona sem saber o que eu realmente tinha. Te tratam como cachorro”, revela. Ele denuncia que a situação só melhorava quando havia visita de representantes do Ministério Público. “A água voltava, e serviam uma comida melhor. Era inacreditável”, diz. “Cheguei a pensar em tirar minha vida”, conclui. Após ficar quase quatro anos na unidade, Batista está em prisão domiciliar e com emprego.

A ex-detenta Isabella Cristina saiu do presídio há cinco meses e também tenta levar a vida adiante, após vivenciar uma piora no contexto das alas LGBTQI+ nos últimos tempos. “Faltaram políticas públicas”, diz a transexual, que relata ter percebido uma piora na saúde mental dos detentos após a proibição das visitas presenciais, em função da pandemia. Para ela, muitos detentos estão tomando doses de medicamentos acima do recomendado por displicência da administração.

Pandemia piora saúde mental de detentos

Recém-empossada como coordenadora de Promoção dos Direitos LGBTQI+ da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), Walkiria La Roche se demonstra pasma com a situação desses cidadãos no sistema prisional nos últimos anos. Mulher transexual e ativista histórica do movimento, ela defende que o governo atual tem trabalhado para resolver os problemas. “Quando eu me deparei com aquelas pessoas (no presídio) sem estar estudando, eu disse ‘eu não conheço isso aqui’”, conta. A coordenadora afirma que vai pedir que seja retomada a capacitação ininterrupta dos servidores para evitar situações de preconceito.

No entanto, Walkiria alega que algumas questões são estruturais ou circunstanciais. A pandemia, ela diz, piorou a saúde mental dos detentos, especialmente os do segmento LGBTQI+, que geralmente são abandonados pelas famílias e não recebem visitas. “Não temos opção de trabalho nem respeito da sociedade. Isso tudo serve de mola propulsora, porque a gente não tem perspectiva de futuro”, aponta. Sobre a elucidação dos suicídios, Walkiria aguarda o término das investigações. “Quero ouvir essas autoridades para seguir meu trabalho. Não podemos jogar para baixo do tapete”, defende.

“São cadáveres que se acumulam”, diz defensor

O contexto de precariedade está causando suicídios na unidade prisional LGBTQI+ em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte. Essa é a alegação do defensor público Paulo César Azevedo, que entrou com a ação contra o Estado pedindo indenização de R$ 1 milhão pelas mortes no local. O processo está em trâmite judicial.

Segundo ele, o fato de esses detentos especificamente serem vítimas de preconceito acaba empurrando-os para um lugar de sofrimento mental. “O índice de exclusão familiar entre elas é muito grande. A cultura do nosso país incentiva a homotransfobia”, afirma. Para ele, o cenário em Bicas é devastador. “As pessoas ali estão expostas a um sofrimento intolerável”, alerta. A penitenciária não possui unidade de saúde LGBTQI+.

A Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) afirmou que está contratando mais profissionais de saúde para atender a penitenciária. A pasta também informou que instalou televisores nas celas e realiza atividades culturais para fomentar a autoestima. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) determinou que o governo promova tratamento hormonal e cirurgias de redesignação sexual às detentas que necessitarem desse serviço de saúde pública. “O que queremos é evitar notícias trágicas de vidas sendo perdidas, quando o Estado deveria ser o responsável por cuidar e socializar. São cadáveres que se acumulam no tempo”, finaliza o defensor público.