Cidadania

A esperança que brota do lixo

Orquestra muda a rotina de jovens que vivem no aterro sanitário de Cateura, em Assunção

Por Da Redação
Publicado em 27 de junho de 2017 | 03:00
 
 
Meninas que moram no aterro sanitário de Cateura indo para a escola de música Foto: Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura /Divulgação

Latas de tinta vazias, palete, alumínio e garfo retirados do lixo se transformam em violino. O violoncelo foi feito de lata de azeite usada e palete. O tambor, além do palete, tem radiografias que foram descartadas no aterro. A guitarra foi feita com latas de doce e palete, e o si bemol do saxofone vem de um tubo de água, moedas e tampas de cerveja.

Foi com esses instrumentos que a Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura ganhou o mundo e tem emocionado a quem assiste a suas apresentações.

Os instrumentos são fabricados em uma das favelas mais pobres da América Latina, construída em cima do aterro sanitário de Cateura, em Assunção, capital do Paraguai.

Tudo começou quando Favio Chávez, 41, maestro com formação em tecnologia ambiental, foi, em 2006, implementar um programa de reciclagem de lixo em Cateura.

Observando a situação de vulnerabilidade das crianças e dos jovens que ali viviam, Favio decidiu abrir uma escola de música e, para isso, convidou Nicolás Gómez, que tem o apelido de “Cola” e é coletor de lixo e luthier de instrumentos reciclados. Juntos, Favio e Nicolás passaram a construir instrumentos musicais a partir do lixo.

Assim nascia a Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura. “Nossa proposta é ensinar música a crianças e jovens em situação de risco e de exclusão social. Começamos trabalhando com dez crianças e, hoje, temos em nossa escola 300 meninos e meninas, entre 5 e 25 anos, além de 25 professores. Nosso sustento vem dos concertos que fazemos e da parceria com organizações internacionais que apoiam artistas. Já estivemos em mais de 40 países e, no Brasil, nos apresentamos no Rio de Janeiro, em São Paulo, São Luís, Salvador, Foz do Iguaçu e Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul. Nossa trajetória está no filme ‘Landfill Harmonic’”, comenta Favio.

A orquestra conta com instrumentos que imitam violinos, violas, violoncelos, baixos, guitarras, flautas, saxofones, trompetes e os de percussão. O repertório inclui músicas clássicas, paraguaias, latino-americanas, folk, pop, Beatles, Frank Sinatra e metal sinfônico.

“Por meio da música, motivamos os jovens e mostramos a importância do aprendizado, de permanecer na escola, de desenvolver criatividade e de ampliar as oportunidades para um futuro mais promissor. Vários adolescentes que iniciaram a formação musical conosco já estão tocando em sinfônicas do Paraguai”, orgulha-se Favio.

O maestro considera que esse trabalho não é filantropo, mas uma obrigação de todos que têm melhores oportunidades na vida. “Vivemos em um mundo que pertence a todos, o que acontece com o outro também me afeta”, diz.

A orquestra e a escola de música resgatam a esperança para todos os que vivem no e do aterro, revelam a resiliência do espírito humano e dão um testemunho do poder transformador da música.

“As crianças e os jovens aprendem as primeiras notas musicais em instrumentos reciclados, surgidos do lixo, sem valor monetário, que não podem ser vendidos nem empenhados. Eles só têm valor em suas mãos. Muitos deles estão aprendendo a cuidar de algo próprio pela primeira vez. O mais importante para nós são as pessoas por trás dos instrumentos”, ressalta o maestro.

Números. A orquestra trouxe esperança para centenas de adolescentes que vivem em situação de risco em Cateura. Veja mais em: https://www.youtube.com/watch?v=fXynrsrTKbI


A cultura é uma necessidade básica

Toneladas de lixo são despejadas diariamente no aterro sanitário de Cateura, fonte de sustento para dezenas de famílias. Aí, convivem duas realidades extremas: histórias de drogas, violência, alcoolismo e rivalidades e o projeto do maestro Favio Cháves, que resgata a dignidade de centenas de jovens, que aprendem a tocar um instrumento construído com aquilo que foi descartado.

“A cultura é uma necessidade básica, e a música pode mudar vidas. Mesmo em situações tão adversas é preciso continuar a sonhar. É o caso da Ada e da Tânia, que fazem parte do projeto e mudaram suas vidas. Essa não é uma orquestra improvável, mas a materialização do desejo de um mundo melhor. A ideia inicial foi simplesmente impedir que as crianças brincassem no aterro”, comenta Favio.

O início foi muito difícil porque a orquestra não tinha lugar para ensaiar. As crianças não sabiam nada sobre a música. Hoje eles têm um prédio próprio.

“Os instrumentos reciclados foram melhorados e, em muitos casos, soam melhor do que os ‘made in China’. Eles podem ser levados pelas crianças para suas casas. Se fosse um violino de verdade, elas não teriam como deixá-lo em segurança em suas casas, pois os pais tinham medo que eles pudessem ser roubados ou mesmo vendidos para comprar drogas”, finaliza Favio.