Aprendizado

A pedagogia do teatro no mundo da ‘tela plana’

Antes uma realidade impensável, cursos práticos de artes cênicas e performáticas testam limites e experimentam novas dinâmicas na virtualidade

Qua, 12/05/21 - 03h00
Imagens do média-metragem "Éramos em Bando", lançado no ano passado e que é um experimento híbrido entre o teatro e o cinema | Foto: André Baumecker/Divulgação

Por ter aniquilado qualquer possibilidade segura do encontro e da presença física, a pandemia de Covid-19 gerou e ainda tem gerado impactos significativos na rotina de cada um e de todos nós. A maior emergência sanitária dos últimos cem anos impôs desafios antes inimagináveis. Há pouco mais de um ano, não pareceria plausível à maioria das pessoas que relacionamentos – familiares, amorosos, profissionais ou de amizade – fossem mantidos ou constituídos sobretudo por meio de videochamadas. Talvez, algo assim parecesse circunscrito aos limites das ficção científica ou do surrealismo. Esse mesmo estranhamento, ainda hoje, em pleno mundo da “tela plana”, se impõe em certas circunstâncias. Por exemplo, mesmo que diversas dinâmicas socioculturais e econômicas tenham se adaptado ao digital, para muitos, nesse momento, o estudo de disciplinas artísticas como o teatro e a dança, que predizem a necessidade do contato, pode soar a uma distopia futurista.

Não é segredo para ninguém que o setor cultural tem sido um dos mais profundamente afetados pela pandemia. Há mais de um ano, espaços de apresentação teatral e outros eventos estão interditados – e os que voltaram a funcionar precisaram adotar severas restrições, como uma brusca limitação da capacidade de lotação.

Nesse contexto, artistas, individual ou coletivamente, têm buscado pensar e criar soluções para que, simplesmente, consigam continuar. Não que, em um primeiro momento, a tarefa não tenha parecido qualquer coisa de impossível. Foi essa também a sensação que assustou agentes culturais envolvidos com cursos de arte. É o que mostra esta reportagem, que ouviu profissionais envolvidos diretamente com a pedagogia do teatro, da palhaçaria e da dança sobre limites, desafios e possibilidades da digitalidade no contexto do estudo das artes cênicas e performáticas.

Teatro para o nada

A atriz, dançarina, coreógrafa e diretora Lydia Del Picchia, que há 16 anos coordena o núcleo pedagógico do Galpão Cine Horto, descreve a experiência de alunos e professores no período pandêmico em três atos, como em um espetáculo épico-contemporâneo: “Primeiro, veio o susto. Depois, a ilusão. E, então, alguma coisa ainda incerta e difícil de nomear”, diz, detalhando, em seguida, cada um desses marcadores temporais: “De início, ficamos sem chão, sem entender bem o que estava acontecendo. Diante das notícias que chegavam, decidimos parar por dois meses, imaginando que a turbulência logo passaria. Finalmente, entendemos a dimensão do que estava acontecendo e entendemos que tudo tinha mudado. Que tudo tinha mudado para sempre”.

Algo próximo desse conjunto de sensações que Lydia busca condensar já havia sido descrito, em 2016, pela escritora norte-americana Lily Brooks-Dalton, no livro “O Céu da Meia-Noite”, posteriormente adaptado para o cinema. Na trama, uma equipe de astronautas participa de uma expedição rumo ao planeta Júpiter. Durante o retorno à Terra, as comunicações são interrompidas. Quanto mais se aproximam, mais fica evidente que há algo de errado. Apesar de tudo, a tripulação segue com sua rotina. O que os mobiliza a continuar, apesar da incerteza absoluta, a autora não explica.

Transpondo, de forma análoga, as inquietações que ficam em aberto na ficção literária para a realidade de agora, podemos questionar: para quê, afinal, continuar a se debruçar sobre o teatro se os palcos, onde essa arte respira sem a necessidade de um escafandro, estão interditados? É de maneira concisa que a atriz e roteirista Bruna Trindade responde à provocação: “Teatro para o nada”. Assim a artista e educadora nomeou o curso pensado e ministrado por ela ainda no primeiro ano de pandemia. 

Bruna lembra que naquele primeiro semestre de 2020, como tantas outras pessoas em todo o mundo, sentia-se um tanto apreensiva e desmobilizada. “Muita gente relatava uma certa desmotivação. E isso é normal, é natural. Nós já havíamos ficado tanto tempo presos dentro de casa… Acho que já era esperado que a nossa energia se voltasse para dentro. E foi a partir disso que pensei essas aulas”, explica ela, que, antes da pandemia, dava aulas presenciais para um grupo de alunos adolescentes. Eles não titubearam e aceitaram encarar o desafio virtualmente.

“Eu sei que é difícil ensaiar dentro de casa, que essa é uma sociedade que lida mal com a solidão, com a espera, com a paragem. Mas minha pesquisa, antes da pandemia, já partia desse lugar da espera em oposição à ideia de convivência muito baseada no desempenho. Para mim, portanto, foi um exercício muito orgânico chegar ao digital com essa proposta nesse momento”, pontua. Hospedado nas plataformas online da Ritornelo, um coletivo e núcleo de criação audiovisual que passou a ofertar diversos cursos de curta e média duração a partir de junho do ano passado, lê-se na ementa do projeto de formação cênica idealizado por Bruna: “Teatro para o nada, porque de fato estaremos atuando para um espaço vazio de pessoas. Somos observados a partir de um dispositivo. E também porque este teatro não tem finalidade, não é útil. Não é produtivo. Não tem para onde ir. É um teatro que se faz na espera, na paragem e nas falhas. Mas ainda é teatro, ainda é”.

Outros olhares

Lydia Del Picchia concorda com as considerações de Bruna Trindade. “Para que serve a arte? Não serve para muita coisa. Mas nos dá a capacidade de olhar para e de pensar o mundo de perspectivas diferentes. É por isso que artistas têm em si grande capacidade de resiliência e de resistência”, examina. E se o que se está fazendo nesse momento é, propriamente, teatro, para ela pouco importa. “Aos que perguntam o que é isso que estamos fazendo, que insistem em nos lembrar de que “isso não é teatro”, eu digo que, na verdade, neste momento, não importa tanto o que seja, desde que a gente não pare de fazer. Se é isso que temos, é isso que faremos. Os pesquisadores no futuro terão um vasto material a ser estudado, eles poderão saber o que foi tudo isso, a que serviu, como influenciou as novas gerações. A nós agora cabe fazer. Nós estamos inventando uma prática, criando novas maneiras de nos relacionar com a arte, com as pessoas, nos mantendo vivos”, escreve a atriz em uma troca de e-mails posteriormente publicada pela “Revista Subtexto”, publicação dedicada ao teatro do Galpão Cine Horto.

No relato, Lydia garante ainda ter a memória física do pavor e da rejeição aos meios virtuais para as aulas remotas. “Não é possível, não vamos conseguir, os alunos não vão aceitar, o teatro necessita da presença, do momento, do olho no olho, do calor, do espaço”, escreve, concluindo que “tudo isso é a mais pura verdade, mas não é toda a verdade”.

“Nós, artistas – sim, porque não somos apenas educadores, somos criadores que compartilhamos nosso conhecimento –, temos a necessidade vital do encontro e a arte se faz extremamente necessária nesses momentos de dúvidas, de incertezas. Ela nos ajuda a elaborar e, por consequência, a lidar melhor com situações-limite. E acho que foi esse misto de responsabilidade, medo, desejo, curiosidade e sei lá mais o quê que nos fez dar um passo em direção ao sim: Sim, vamos tentar. Sim, precisamos nos movimentar. Sim, seremos capazes!”, continua ela, que, assim como Bruna, comemora a adesão dos alunos à “aventura”. 

“Para nossa sorte e alegria, pudemos contar com a forte adesão dos alunos que já haviam se matriculado para o semestre. Até mesmo as crianças e os adolescentes, que nós achávamos que não iriam se interessar em acumular mais um compromisso no mundo da tela plana, ao contrário, vieram cheios de energia e conhecimento das ferramentas”, anota, situando que, claro, alguns se sentiram desestimulados e desistiram do curso. “Totalmente compreensível. Nós mesmos chegamos a ter dúvidas se insistir nas aulas remotas não seria embarcar numa canoa furada”, pondera.

Individualidades. Leonardo Rocha, co-fundador do Grupo Maria Cutia, faz coro à possibilidade de os cursos práticos de arte despertarem um novo olhar para o cotidiano e para o mundo à nossa volta. Para ele, apesar de cada experiência, nas aulas virtuais, ser muito pessoal, sendo que mesmo os objetos e espaços usados em cena são da própria pessoa ou de alguém próximo, abre-se a oportunidade de essas individualidades se somarem em uma coletividade, permitindo-se, ainda, um respiro em um momento em que vive-se sob o signo do isolamento social. 

A arte convivial e a lógica do ‘tecnovívio’

Embora seja verdade que a tecnologia digital, há algumas décadas, tem sido experimentada e integrada à cena teatral, tornando-se um elemento cênico, é fato que, agora, a onipresença da digitalidade demarca o início de um outro momento, demarcado por uma integração nunca antes tão disseminada entre o performático e o virtual.

Nesse contexto, companhias encaram todas as etapas do processo, da concepção à apresentação do espetáculo, frente à tela. E, na educação, essa realidade se repete. Na Ritornelo, além de encararem uma extensa rotina de reuniões online para programar desde o conteúdo até a divulgação dos cursos, todos os cinco integrantes do coletivo assistem às aulas uns dos outros. Com essa prática, torna-se possível que eles façam considerações sobre eventuais problemas e sugestões de novas abordagens. A experimentação, portanto, é uma constante. No Galpão Cine Horto, o esforço de adaptar o conteúdo para o virtual também é contínuo e exibiu incontáveis horas de videoconferências com toda a equipe pedagógica. Encontros que continuam a ser realizados rotineiramente.

Do planejamento, passando pelas aulas em si e culminando em trabalhos desenvolvidos pelos alunos, tudo passa pelo uso de dispositivos tecnológicos. E não há nada nesse fenômeno de mergulho no digital que desabone o fazer artístico, como argumenta o argentino Jorge Dubatti. Em entrevista à revista pernambucana “Continente!”, o diretor do Instituto de Artes do Espetáculo da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e fundador da Escola de Espectadores reforçou que “o teatro e a dramaturgia estão em um constante diálogo com os tempos, adaptando-se a eles, sem perder sua essência”.

Para o estudioso, “o isolamento social explicitou a importância do encontro e da presença para a humanidade, gerando uma ânsia por isso”. Mas não só. A necessidade de passar em revista as formas do fazer cênico conduziram a uma vasta pluralidade de criações e experimentações, que, na avaliação do estudioso, são benéficas.

Há duas décadas, Dubatti faz pesquisas em filosofia do teatro que miram dois conceitos distintos: por um lado, há a arte como um acontecimento convivial, “que só existe enquanto está sendo realizado, e, assim, deve ser compreendido a partir de sua práxis única, localizada e territorializada”, como define a publicação da “Continente!”; por outro, há o tecnovívio, que é caracterizado, sobretudo, pelo uso de máquinas para mediar as relações humanas. Tais reflexões, é seguro dizer, nunca foram tão urgentes e atuais. E, de alguma maneira, esses pensamentos são também incorporados por Bruna Trindade ao falar sobre a própria experiência frente ao curso “Teatro para o nada”.

Convívio. “Eu já vinha pensando em sobre a convivência online, que era isso o que a gente teria no momento, então era a partir disso que deveríamos seguir. Com o tempo, notei que existe uma importância dessa aula virtual em um sentido que é muito diferente da importância da aula presencial”, reflete a atriz e professora, que prossegue: “A pessoa está em sua casa, jogando com seus objetos, com os objetos de seus pais. Isso, para mim, é muito especial, pois dá a possibilidade de se criar arte interagindo com esses itens do cotidiano”, diz.

Lydia Del Picchia segue na mesma toada. “A presença, mesmo que virtual, é real. Mais do que a tela plana, vivemos e respiramos em um mundo tridimensional, que tem volume, peso, profundidade, temperatura, cheiro... Portanto, eu me relaciono com quem está do outro lado, não com a máquina, que apenas me fornece a possibilidade de comunicação entre o meu mundo e o do outro”, diz, concluindo, com o poder de síntese que lhe é característico: “O resultado é a tela, mas o processo precisa dissolver essa fronteira para que o aluno perceba seu espaço, perceba seu corpo”. 

“Parece bastante óbvio, mas (entender isso) foi um movimento demorado. E libertador. No momento em que conseguimos transpor essa barreira (da tela) a conexão aconteceu. E recuperamos o grande prazer de receber os alunos nas aulas e, juntos, explorar esse novo mundo que se revela aos poucos”, escreve Lydia no e-mail publicado na revista “Subtexto”. Ela prossegue: “Até então, o movimento natural era eu me deslocar até o teatro, entrar no espaço teatral – que, convenhamos, é mágico e continua insubstituível –, mas agora eu abro minha casa para ele. Ele está no meu quarto, na minha cozinha, no meu quintal. Estamos de certa forma mais íntimos, algumas vezes com parte da família na plateia – e de camarote! Penso que esse é um caminho sem volta”.

Possibilidades. Falando em fronteiras abertas, o poder de superar distâncias e fusos horários é, sem dúvida, o aspecto do ensino remoto do teatro mais celebrado por Lydia. “Agora, temos alunos fazendo aulas com pessoas que vivem em outros países, incluindo um que vive na Austrália. Temos pessoas de outros Estados, do Recife, de São Paulo, do Rio Grande do Sul. Isso é incrível. É uma possibilidade que se abriu e essa é uma porta que vai continuar aberta, mesmo no momento em que a gente puder voltar para o presencial”, garante.

Leonardo Rocha corrobora com a análise – e também mostra-se estimulado por esse encurtamento de distâncias, que tem como efeito um autêntico compartilhamento de culturas. “O grande barato, talvez, é a possibilidade de pessoas do Brasil inteiro fazerem o curso. Tem gente da Bahia, de São Paulo, do Pará, do Piauí… Provavelmente, elas não conseguiriam vir a Belo Horizonte se (as aulas) fossem presenciais”, comenta, complementando que, com efeito, potencializa-se uma ampliação de visões de mundo. “Cada um, vindo de cada Estado, traz consigo culturas completamente diferentes, o que enriquece muito a turma, o processo e a própria pesquisa da linguagem”, conclui. 

O co-fundador do Grupo Maria Cutia também acredita que as possibilidades do virtual devem continuar a ser exploradas no mundo pós-Covid. “Claro, nunca vai substituir a presença, mas acho que a presença não vai suprimir o online. Acredito que  vão ser duas maneiras de a gente trabalhar”, situa.

Produtora oferece curso de ‘Teatro Remoto’ neste sábado

Logo nos primeiros meses de pandemia, quando a Cyntilante Produções se abriu para experimentação de novos formatos de transmissão para o seu repertório de musicais infantis, o diretor artístico do grupo, Fernando Bustamante, desenvolveu a linguagem do “Teatro Remoto”. A técnica foi o fio condutor das 25 exibições ao vivo realizadas em 2020 pela trupe, e que contaram com a participação de cerca de 30 artistas.

De maneira resumida, Bustamante expõe que, “durante a apresentação virtual do espetáculo, os atores contracenam, ao vivo, a três metros de distância, no palco. Por meio do recurso de Chroma-Key, muito empregado no audiovisual, os personagens são aproximados digitalmente em uma espécie de cenário virtual, dando a ilusão para o público, em casa, de que estão no mesmo ambiente ou podem até se tocar”, afirma. “Em tempos de pandemia, é uma maneira dos artistas se apresentarem com bilheteria, preservando a saúde da equipe e possibilitando um faturamento na venda do conteúdo”, complementa.

No próximo sábado, dia 15, artistas, técnicos e produtores de artes cênicas de todo o país terão acesso a um curso online em que as técnicas desenvolvidas pela Cyntilante Produções serão apresentadas. Para participar é necessário o preenchimento prévio do formulário (acesse clicando neste link). A aula será transmitida das 18h às 20h, ao vivo e com acessibilidade em Libras, pelo Youtube e pelo Facebook da Cyntilante Produções.

(Com Patrícia Cassese)

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