Diversidade

Autismo na vida adulta: desafios e perspectivas

Ativista narra dificuldade para se ter um diagnóstico tardio

Por Da Redação
Publicado em 30 de novembro de 2023 | 09:20
 
 
Adriana Torres, que chegou ao diagnóstico de autismo na fase adulta, e seu filho Leon, diagnosticado aos 3 anos de idade Foto: Arquivo pessoal

O diagnóstico de Leon para o autismo – considerado um espectro, pois apresenta uma grande variedade de características e níveis de suporte, que podem variar de pessoa para pessoa – veio rapidamente. Com 3 anos, ele ainda não utilizava a linguagem oral e apresentava algumas características entendidas como próprias dessa condição, o que facilitou sua identificação.  

“Ele demonstrava mais interesse em ambientes e objetos que em pessoas, só olhava nos olhos de quem ele tinha intimidade e, em que pese não ser o típico autista com hiper-responsividade na maioria dos sentidos, ou seja, que evita os estímulos sensoriais, a neuropediatra não teve dúvidas quando o levei para avaliação”, menciona Adriana Torres, mãe do menino. Além desse conjunto de fatores, Leon já fazia terapia com uma neuropsicóloga havia mais de um ano e tinha sessões de fonoaudiologia semanais desde os 18 meses. “Os relatórios das profissionais ajudaram bastante, e a identificação (do quadro de neurodivergência) veio com 3 anos e 3 meses de idade”, conta ela, informando que, hoje, com 11 anos, ele é um autista de suporte nível 2, já que ainda precisa de apoio para as atividades básicas do dia a dia. 

Curiosamente, a história de Leon contrasta com a de sua própria mãe, que, só após a descoberta da condição do filho e de muita persistência, o que incluiu uma via-crúcis por consultórios médicos, foi se descobrir, já na fase adulta, uma mulher autista. O relato dela, aliás, é emblemático das dificuldades de se chegar a um diagnóstico tardio e suas consequências. Adriana, afinal, é uma das milhares de pessoas que vivem com autismo na vida adulta, uma condição neurológica que afeta a forma como a pessoa se comunica, se relaciona e se comporta, que geralmente é identificada na infância, enquanto muitos adultos e idosos passam a vida sem receber o diagnóstico por uma série de fatores, como a falta de informação ou de acesso a serviços especializados.

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“No meu caso foi bem complicado”, inicia Adriana. “Eu já estava com 46 anos e uma carreira consolidada na área de gestão da comunicação. Com o diagnóstico dele, em 2015, eu e meu marido decidimos que eu suspenderia meu trabalho para acompanhá-lo nas terapias, e eu mergulhei no estudo da condição, encontrando no paradigma da neurodiversidade as respostas que buscava sobre o diagnóstico”, comenta, inteirando ter sido muito fácil para ela entender o que é o autismo. “O difícil era entender o que as pessoas acreditavam ser o autismo”. Mas, mesmo assim, a hoje adestradora de animais não se via como uma pessoa autista, mas sim como uma mãe de autista com algumas características que poderiam configurar o Fenótipo Ampliado do Autismo (FAA). Diga-se, assim como ela, muitos adultos só descobrem o autismo depois que seus filhos ou parentes recebem o diagnóstico ou quando buscam ajuda devido a problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão ou estresse. 

“Foi meu marido a primeira pessoa que desconfiou, e confesso que desacreditei dele. Afinal, eu me comunicava muito bem para ser autista, inclusive trabalhava com comunicação”, recorda, ressaltando como aquele estereótipo funcionou como uma barreira para o seu autoentendimento. Essa convicção começou a ruir à medida que Adriana passou a conviver com autistas adultos na Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça). “Todo dia, encontrava alguém com ótimas habilidades verbais, assim como eu, como Fernanda Santana, Amanda Paschoal, Rita Louzeiro… Todas elas, mulheres adultas e autistas com ótimas habilidades verbais e bem diferentes dos mitos propagados por aí”, cita.  

“Depois de um tempo, a dúvida cresceu tanto dentro de mim que não teve jeito: eu precisei buscar respostas”, lembra, detalhando que, a partir de então, iniciou uma jornada em que precisou lidar com diversos profissionais que respondiam suas dúvidas com aquele mesmo clichê: que ela se comunicava muito bem para ser autista. 

O que não parecia ser considerado nessas consultas é que a habilidade de comunicação vai muito além do domínio da língua. “Acontece que eu sempre tive péssimos relacionamentos desde a infância, justamente pela minha dificuldade de interação. E meus péssimos relacionamentos, pessoais e no trabalho, evidenciavam o que eu mesma não queria ver: eu tenho um déficit substancial na minha comunicação social com os neurotípicos”, indica, citando também ser uma pessoa de interesses bem restritos, com uma sinceridade que muitas vezes choca e uma mente rígida demais e cheia de regras. “‘Chatinha’, dizia minha mãe”, resume, admitindo que rótulos não faltaram ao longo de sua vida – nenhum deles agradável. 

Nessa caminhada, foram dois anos de busca – “e de muito capacitismo” –, em que Adriana ouviu respostas sem sentido e chegou a receber duas hipóteses de diagnóstico que se provaram equivocadas. “Cheguei a ouvir de uma psiquiatra, mãe de dois autistas adultos não oralizados, que ela não poderia me dar o diagnóstico, mesmo eu apresentando as características, porque eu era muito diferente dos filhos dela e, se me desse o diagnóstico, teria que arrumar outro nome para o que eles tinham. Bem, isso não é critério diagnóstico nem nunca foi”, critica.

Diante dessa realidade, o apoio e acolhimento dos colegas da Abraça e do marido se mostraram fundamentais para que Adriana não desistisse. “Quando passei pela avaliação da psiquiatra que me deu o diagnóstico – pontuando que, pelos testes que fiz, eu tenho altas habilidades verbais, o motivo da confusão dos outros profissionais –, consegui equacionar minha dúvida. Foi um alívio enorme entender todo o meu passado e encontrei paz”, reconhece. 

Paradigma da neurodiversidade 

“Assim como o modelo social de deficiência afirma que ter determinada característica – sensorial, física e/ou mental – não faz de ninguém uma pessoa pior e que a deficiência é o resultado do encontro dessa pessoa, que tem essa particularidade, com as barreiras – atitudinais, comunicacionais e/ou arquitetônicas – impostas pela sociedade para acessar direitos básicos, o paradigma da neurodiversidade nos traz a certeza de que ser uma pessoa autista, com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) etc. não é um problema. Somos parte da diversidade humana e, como na natureza, é por meio dessa diversidade que encontramos o equilíbrio e o progresso da humanidade”, defende Adriana Torres, que atua hoje como ativista pelo paradigma da neurodiversidade. 

Ela detalha que, em sua militância, defende duas premissas básicas: a presunção de competência plena, que diz respeito à ideia de que todo mundo pode aprender e, se o aprendizado não ocorre, não é culpa da pessoa, mas do ambiente, da cultura ou do professor; e de que só o amor educa, enquanto a punição – que se dá de diversas formas, incluindo a não aceitação e a busca por uma cura de algo que não é doença – é prejudicial para o aprendizado. “O amor – que se dá como aceitação, respeito e reconhecimento do valor do outro – é a chave para termos um mundo melhor em todos os sentidos e para todas as pessoas e animais que vivem nele”, avalia. 

Necessidade de mudança 

Na avaliação de Adriana Torres, é preciso uma revolução em nossa sociedade para que as pessoas neurodivergentes sejam, de fato, integradas a ela. “Para isso, o Estado tem a obrigação de criar políticas afirmativas para que grupos minoritários como o nosso tenhamos acesso a saúde, educação, trabalho, lazer e cultura”, diz, complementando que representatividade importa. “Termos autistas de variados níveis de suporte em todos os setores da sociedade, inclusive na política, falando por si mesmos sem utilizar a linguagem falada (comunicação alternativa e aumentativa é investimento para ontem), é ponto-chave para começarmos essa transformação”, defende. 

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“É preciso também que as pessoas parem de idealizar filhos antes mesmo de eles nascerem, pois nada é mais desafiador para nós do que parentes que nos desumanizam e não acreditam no nosso valor ou nossa capacidade. Autistas precisamos de apoio, e isso não é demérito. Todo ser humano precisa de mais ou menos apoio. A família é arrimo que faz toda a diferença na nossa vida”, reivindica. 

Por fim, Adriana é enfática ao dizer que a educação precisa mudar. “Estamos no século XXI e ainda vivemos sob um sistema educacional criado para fornecer operários para a indústria. Nenhum ser humano, hoje, se sente acolhido numa escola de ensino tradicional, que dirá de nós, autistas, que ainda temos que enfrentar as barreiras de socialização por conta do capacitismo da comunidade escolar, a sobrecarga sensorial e a ausência de adaptações mínimas”, critica a ativista. Ela acredita que será mais fácil assegurar os direitos dos autistas quando a sociedade entender que essas pessoas existem desde os primórdios da humanidade e muitas delas contribuíram para o progresso tecnológico, social e moral do mundo.