Esporte sob pressão

Caso Simone Biles expõe como sacrifícios e pressões ameaçam a saúde de atletas

Expectativa alta por parte de família e torcida pode ocasionar disfunções emocionais

Por Da Redação
Publicado em 02 de agosto de 2021 | 03:00
 
 
Simone Biles desistiu de participar da final do individual geral Foto: Reprodução

Por muito tempo um imbatível fenômeno nas apresentações da ginástica artística, a norte-americana Simone Biles surpreendeu o mundo quando, na semana passada, mesmo sendo a favorita ao ouro nas Olimpíadas de Tóquio, renunciou a disputar medalhas em nome de sua saúde mental. Não foi a primeira vez que a atleta se colocou na trincheira em defesa de mais respeito a pessoas que demandam algum tipo de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico. Em 2016, a ginasta negra de 1,47 m e 47 kg já se valia da própria projeção midiática para pautar temas como o autocuidado e a neurodiversidade. “Tenho TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) e não é vergonha me medicar para isso”, afirmou à época.  

Dessa vez, o discurso ecoou mais forte. Mais que palavras, a decisão de não competir fez com que o assunto se tornasse incontornável. Afinal, seria impossível ignorar que Simone Biles, a mais celebrada atleta norte-americana no evento e um dos principais ídolos esportivos de sua geração, se recusava a sustentar a fantasia de semideus a ela imposta e reivindicava para si a própria humanidade. O gesto, de imediato, mobilizou a solidariedade de torcedores e, principalmente, de outros esportistas, que também passaram a falar sobre a rotina de extrema pressão e de constantes renúncias que precisam enfrentar. Impelidos a quebrar recordes e a evitar, a qualquer custo, a derrota, muitos deles tiveram pouco ou nenhum suporte emocional. 

“A disposição dela em falar abertamente desse tema é de fundamental importância para que a pauta da saúde mental seja tratada adequadamente e receba a devida atenção”, defende a doutora em psicanálise Andréa Ladislau. “O que a Simone nos mostrou foi a importância do atleta, como também de qualquer pessoa, saber o seu limite. Esse aprendizado, possivelmente, será um dos maiores legados das Olimpíadas deste ano. Algo surpreendente tratando-se de um torneio que valoriza tanto a superação física, mas que não parece tão atento a repercussões associadas a esse desejo de, a cada prova, superar marcos históricos”, opina. 

Andréa lembra que, na maioria das vezes, os atletas de alto rendimento iniciam-se nos esportes ainda muito jovens. E desde cedo precisam lidar com pressões diversas. “Estamos falando de pessoas que precisam abrir mão de uma série de atividades de lazer em nome de obter bons resultados. Estamos falando de pessoas que convivem, desde a infância, com a assombração da derrota ou até com um certo vazio depois que passa a euforia da vitória. São emoções sentidas à flor da pele, que vão impactar esses indivíduos de alguma maneira”, reforça. 

Família 

A psicóloga Amanda Dorvalina de Almeida, líder do departamento de psicologia esportiva do Minas Tênis Clube, destaca que as pressões sobre os atletas não estão restritas ao período em que duram as competições – ainda que se acentuem nestes momentos. “Em nossa experiência, entendemos que a família se faz um suporte fundamental para o desenvolvimento do atleta. Mas, em alguns casos, a pressão excessiva vem justamente desse lugar”, cita. 

“No futebol, que é uma realidade mais próxima, é notável como algumas crianças têm que administrar a expectativa que é posta nelas por seus familiares. Caso de filhos de pais que, por alguma razão, não conseguiram se tornar profissionais dos esportes e depositam nos filhos seus desejos. E há também o caso de crianças que, vindo de uma realidade socioeconômica vulnerabilizada, se tornam a esperança da família toda para uma vida melhor. É um peso muito grande para que esses meninos e meninas carreguem sozinhos”, salienta. 

Efeitos 

“Não bastasse a rotina de viagens, a privação de contato com a familiares ou amigos, as longas jornadas de treinamento, muitas vezes exaustivo, e a lida com as competições, em que é presente o medo da falha, a frustração pela derrota ou por sofrer lesões e a euforia da vitória, outro problema que ocasionalmente aparece na mídia diz respeito a posturas abusivas de treinadores, que usam da agressividade para, supostamente, motivar os esportistas, aumentando o estresse desses profissionais”, pontua Andréa Ladislau. 

“As consequências dessa estrutura, caso não haja nenhum tipo de acompanhamento, podem ser graves”. Entre os possíveis efeitos, a psicanalista lista a insônia, distúrbios de ansiedade e estresse, incluindo disfunções alimentares e transtornos de humor, como a depressão. 

Cuidados 

Atentos à necessidade de suporte psicológico, o Minas Tênis Clube, que levou 11 competidores e dois técnicos para as Olimpíadas de Tóquio, tem apostado em uma abordagem abrangente. “Inauguramos, recentemente, a plataforma do Projeto 360, que tem como foco o diálogo com os pais. A cada 15 dias, por exemplo, liberamos conteúdos sobre a melhor forma de dar suporte aos filhos. Além disso, realizamos reuniões periódicas e apresentamos os cronogramas deles com antecedência”, explica Amanda de Almeida. Os treinadores também recebem atendimento e treinamento psicológico. “Na última semana, por exemplo, encerramos com uma oficina sobre motivação e desempenho”, observa. 

“Nós acompanhamos de perto os atletas, buscando monitorar índices de estresse e ansiedade. Nossa equipe de psicologia esportiva atua em várias frentes com eles. Fazemos ações coletivas, com intervenções em quadras e rodas de conversa e também possuímos duas salas para o atendimento pessoal, em que questões mais íntimas serão tratadas”, sinaliza. 

Pesquisa 

Um estudo realizado pelas psicólogas Renata Borja e Marisa Santiago indicou que atletas vencedores e aqueles que nem sempre se mantinham no pódio demonstravam posturas diferentes em relação às provas. “Identificamos que todos tinham crenças de capacidade e se julgavam excelentes no que faziam. Entretanto, os vencedores se estimulavam ainda mais durante uma competição, enquanto os outros focavam problemas que podiam acontecer ou suas fragilidades, ou habilidades dos seus oponentes. Os vencedores, diante das situações de risco, focavam em si mesmos e faziam o seu melhor, sem permitir que os pensamentos negativos os consumissem. Portanto, ter os pensamentos e emoções equilibrados e utilizar a ansiedade como mola faz toda a diferença”, explica Renata.

Histórico

Outros atletas já falaram sobre como o equilíbrio emocional e a saúde mental se impõem como desafio na rotina dos esportes de alto rendimento. 

Maior ganhador da história das Olimpíadas, o ex-nadador norte-americano Michael Phelps, que soma 23 ouros em quatro edições dos jogos e 37 marcas mundiais, revelou sofrer de depressão. Ele chegou a manifestar ideações suicidas. “Na verdade, após cada Olimpíadas eu me sentia em um grande estado de depressão”, disse, em 2018.

A mesma doença afastou das quadras a tenista Naomi Osaka, número dois no ranking mundial da categoria. A japonesa, que acendeu a pira olímpica neste ano, voltou a competir após meses parada por causa do transtorno, mas foi eliminada nas oitavas de final.

O brasileiro Adriano Imperador, muito criticado quando, cinco anos atrás, encerrou sua vitória carreira no futebol, também manifestou apoio a Simone Biles. “Sei exatamente o que você está passando”, escreveu o atacante em seu perfil no Instagram.