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Crianças cada vez mais tristes

Cinco milhões de pequenos brasileiros têm algum tipo de transtorno psicológico, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria

Dom, 27/11/16 - 02h00

No lugar da inocente leveza que só a infância é capaz de proporcionar, problemas de ansiedade, atenção e comportamento parecem estar ocupando um espaço cada vez maior nesse universo que deveria ser predominantemente de brincadeiras.

Os dados da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) dão conta de que aproximadamente 5 milhões de crianças (12,6% dos brasileiros com idade entre 6 e 17 anos) apresentam sintomas de transtornos mentais importantes, como depressão e fobia social.

O psiquiatra infantil Francisco Assumpção critica o excesso de obrigações impostas aos pequenos atualmente. “Crianças, principalmente pequenas, não param quietas, e justamente por isso elas aprendem. Mas aí eu decido que ela tem que ser alfabetizada em duas línguas aos 5 anos. Como ela não consegue, porque só tem 5 anos, eu coloco mais quatro horas de reforço à tarde”, analisa o especialista. Assumpção dá um conselho para as famílias: uma das coisas mais importantes para a saúde mental da criança é deixá-la brincar. “Brincar não é estar na escolinha de futebol, que é uma escola. Brincar é livre, criativo, espontâneo e sem finalidade aparente”.

O excesso de exigências e expectativas sobre as crianças é, segundo o psiquiatra, um dos grandes causadores dos transtornos mentais infantis. “Hoje em dia não dá pra ser um técnico, eu tenho que ter, no mínimo, um pós-doutorado em Harvard. E a gente esquece que, quanto mais eu aumento as exigências, mais cresce o estresse. E o problema, quando é muito grande, torna-se um distresse, é paralisante e muito pouco saudável”.

Uma pesquisa iniciada em 2014, que pretende traçar o perfil da saúde mental de crianças e adolescentes brasileiros e ingleses, teve seus primeiros resultados divulgados durante o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, há dez dias, em São Paulo.

Foram avaliadas 1.380 crianças brasileiras, com idades entre 6 e 13 anos, e crianças inglesas, de 9 a 18 anos. Dessas, 55,2% eram meninos e 50% tinham problemas de saúde mental. De acordo com as mães entrevistadas, os profissionais mais procurados para auxiliar os filhos foram: psicólogos e assistentes sociais, psiquiatras, clínicos gerais e pediatras (0,3).

“Percebemos que, quando se trata de saúde mental, quanto maior é a sintomatologia, maior é também o uso dos serviços como hospitais, abrigos e residências terapêuticas. A pobreza também se apresentou como um fator de risco para os transtornos mentais e como uma barreira de acesso aos serviços”, adiantou a psiquiatra Graccielle Rodrigues.

A repórter viajou para o Congresso a convite da Associação Brasileira de Psiquiatria


Quando o problema não é tratado

Impactos do TDAH duram a vida toda

Pesquisas mais recentes não deixam dúvidas de que o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) causa grande impacto durante toda a vida e, por isso, merece atenção especial, muitas vezes com tratamento específico aos pacientes, podendo até ser medicamentoso. Porém, o estigma e o preconceito ainda interferem bastante no quadro clínico e na busca de tratamento, segundo a médica Maria Conceição do Rosário – professora adjunta da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e professora associada do Child Study Center, da Universidade de Yale, nos Estados Unidos –, durante o Congresso Brasileiro de Psiquiatria.

“Pesquisas mostram que crianças diagnosticadas com TDAH na idade pré-escolar, dos 3 aos 5 anos, já apresentam problemas de comportamento importantes e menores habilidades sociais do que as crianças sem o transtorno. Além disso, há número de acidentes domésticos, maiores dificuldades no funcionamento familiar e pior qualidade de vida dos pais. E isso é aditivo, ou seja, esses problemas vão se somando ao longo da vida e levam outros problemas no futuro”, afirma.

Já na fase da adolescência, as pesquisas apontam um baixo rendimento escolar, maior número de suspensões, repetência e abandono do curso, comportamento de risco nos relacionamentos sexuais, maiores taxas de gestação precoce, maior risco de abuso e dependência química e de acidentes de trânsito em pessoas diagnosticadas com TDAH.

“Nos estudos em que os pacientes tratados foram avaliados, encontraram-se pouquíssimas evidências da hipótese de sensibilização, ou seja, que usar os medicamentos psicoestimulantes seria um fator preditivo de uso e abuso e dependência química”, avalia Rosário.

Na fase adulta, os maiores impactos revelados são: menos estabilidade nos relacionamentos, menor permanência nos empregos, maiores taxas de desemprego, maiores riscos de abuso e dependência química, principalmente em pacientes não tratados. Pessoas diagnosticadas com TDAH têm menos de 10% de chances de estarem empregadas se forem homens, e menos de 11% se forem mulheres, de acordo com estudo feito nos Estados Unidos.

“Mas se a pessoa que tiver TDAH tratar de forma adequada e o mais precocemente possível, começando por um diagnóstico abrangente, detalhado e correto, isso com certeza fará muita diferença”, garante Rosário.

Sono. Uma das dificuldades dos diagnósticos passa, talvez, pelas comorbidades que costumam estar associadas ao problema. Nos quadros do transtorno, somente 30% dos pacientes apresentam apenas TDAH, os outros 70% costumam ter também outros problemas como, por exemplo, os distúrbios do sono. O psiquiatra do Núcleo de Investigação dos Transtornos da Impulsividade e Atenção do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (Nitida/UFMG), Antônio Alvim Soares chama a atenção para esses impactos.

“As crianças com TDAH têm até 40% de chances maiores de obesidade, do que as crianças sem o transtorno. Além disso, as alterações de sono pioram os sintomas de TDAH, e os pais relatam maiores dificuldade de os filhos pegarem no sono, por exemplo. Existe também uma relação entre a ferritina baixa (proteína de reserva de ferro no fígado) e os transtornos do sono, uma vez que essa insuficiência piora os sintomas de desatenção”, diz. (LM)


Psicóloga cria método que une ioga e brincadeira

Diante de um crescente número de pais se queixando de filhos com falta de disciplina ou relatando o diagnóstico de TDAH, a psicóloga e professora de ioga Ailla Pacheco desenvolveu um método denominado por ela de ‘Psicoterapia Uno’, no qual foram integradas várias áreas para desenvolver foco, concentração e controle da ansiedade.

“Fico triste de ver quantas crianças não se adaptam ao sistema e, por isso, muitas vezes são medicadas. A ‘droga da obediência’ ( como é conhecida popularmente a Ritalina) é mais fácil, mas as consequências são enormes”, diz. Segundo Pacheco, as aulas envolvem uma anamnese, contação de histórias, exercícios respiratórios e meditação. “A criança se diverte, acalma e desenvolve seu equilíbrio físico e emocional, brincando”. (LM)


Especialista

Medicação indiscriminada é criticada

Apesar do crescimento dos transtornos psicológicos em crianças, especialistas criticam o uso indiscriminado de medicamentos. “Quem falou que toda criança que não fica quieta tem TDAH e melhora com Ritalina? Estamos falando de transferência de responsabilidade”, diz o psiquiatra Francisco Assumpção.

Para a médica Maria Conceição do Rosário, porém, ainda é preciso levar em conta que o TDAH vem sendo subtratado no Brasil. “Algumas pessoas acham que está se tratando demais. Infelizmente existem falsos diagnósticos, mas temos apenas 20% dos pacientes tratados e precisamos investir romper preconceitos”, disse.

O dilema trouxe dúvidas para a funcionária pública Shirlaine Fernanda da Rocha, 31, desde que recebeu o diagnóstico do filho, Enzo, 8. “Na escola desde os 5 anos, eu percebi que ele não estava conseguindo acompanhar a turma, mas como não é hiperativo, a neurologista avaliou que não seria o caso de medicação, apesar de a psicóloga achar que os remédios poderiam ajudar na concentração”, conta. (LM)

 

Minientrevista

Francisco Assumpção, psiquiatra infantil e professor da USP

FOTO: ABP / DIVULGAÇÃO
 

Sua palestra no Congresso Brasileiro de Psiquiatria deste ano, sobre “Como fazemos crianças saudáveis”, ficou lotada. O senhor falou sobre superproteção e a relação de hierarquia da casa. Isso vem sendo confundido?

Hoje em dia a criança não pode ser frustrada nem contrariada, por isso ela manda e é soberana. Com isso se inverteu a hierarquia da casa. Claro que eu não estou falando de pais autocratas ou tiranos, mas também não estou falando do domínio da criança. Muito menos de uma luta pela supremacia entre os dois. Uma casa, uma família não é democrática, ela é hierárquica, e a função dos pais é desenvolver atitudes de cooperação com os filhos. É difícil fazer isso com quatro televisões, uma em cada quarto, porque ninguém consegue ser frustrado por não assistir ao que quer.

Muito se ouve falar também que amar resolve uma parte dos problemas. O que o senhor acha disso?

O amor na criação tem uma função fundamental: facilitar independência e autonomia. Jamais eu tenho alguém que eu amo, no máximo eu estou com alguém que eu amo. Cuidar dos filhos significa criá-los para que eles possam ir embora, e não para que eles fiquem para cuidar de mim na velhice.

Nos dias de hoje os instrumentos tecnológicos têm sido muito questionados também. Qual é sua opinião?

O problema do videojogo é ele se transformar na babá eletrônica de pais que têm outros interesses. O problema da televisão é ela ser algo que faz a criança ficar quieta enquanto eu faço o que me interessa. O instrumento pode servir para reforçar ou para substituir a minha ligação de afeto.

Nunca tivemos tantas informações, mas com elas também vieram as novas superstições?

As velhas superstições cederam lugar às novas. Ou seja, o avô ser esquizofrênico não justifica pensar que meu filho vai ser. Até porque os geneticistas são muito mais prudentes que os psiquiatras. Jamais um deles falaria isso de uma patologia com herança multifatorial. Nós falamos. A questão da liberdade é igual. Como imaginar que uma criança de 5 anos escolhe gênero? Isso é absurdo porque ela não tem cognição pra isso. E tem também a questão da “magia”. Quem falou que medicação resolve birra? No horário da alimentação é que se estabelece uma série de relações. Só que uma casa não é um hotel que tem self-service e que a criança escolhe a comida. A comida da casa é essa, e é assim que nós aprendemos a interagir com as pessoas. Além disso, as nossas crianças não suprem as nossas necessidades, e aí ficamos chateados.

A adultização da infância o preocupa?

Crianças são só bichinhos em desenvolvimento, de uma espécie específica, e por isso, antes de eu criticar ou interpretar, eu tenho que conhecer. Crianças, principalmente pequenas, não param quietas e justamente por isso elas aprendem. Mas aí eu decido que ela tem que ser alfabetizada em duas línguas aos 5 anos, mas, como ela não consegue, porque ela só tem 5 anos, eu coloco mais quatro horas de reforço à tarde. “Educar”, se você procurar em qualquer dicionário, entre outras coisas, traz como significado “treinar”. E não vale dizer que eu não treino crianças, claro que eu treino.

Por que o senhor diz que “nunca vivemos num mundo tão politicamente correto” e, por isso, as “nossas avós e bisavós erravam menos”?

Porque, quando uma criança perguntava qual a diferença de um menino e uma menina, elas respondiam o que é da espécie e não ficavam preocupadas se daqui a 40 anos ele vai ser um garoto reacionário. Quando um menininho perguntava por que um menino faz xixi em pé e a menina sentada, ela só explicava uma diferença anatômica, e isso não tem nada a ver com gênero, com papel, com democratização, com nada.

Onde desaprendemos?

A primeira questão é que nós somos a única espécie que terceiriza a criação dos filhos. O segundo ponto é que nós decidimos que as crianças são adultos anões, porque nós pegamos parâmetros do adulto e transportamos para eles. E a terceira questão é o aumento das expectativas parentais e sociais. (LM)