Esotérico

“Mutações” se inspira na simbologia do I Ching

Montagem faz um mergulho profundo na poética e nos ensinamentos do oráculo

Por Ana Elizabeth Diniz
Publicado em 26 de março de 2024 | 03:00
 
 
Atores Luís Melo, Andréia Nhur e Alex Bartelli protagonizam peça Foto: Ale Catan/Divulgação

O festival Teatro em Movimento traz a Belo Horizonte o espetáculo “Mutações” com Luís Melo, Andréia Nhur e Alex Bartelli, direção de André Guerreiro Lopes e dramaturgia de Gabriela Mellão. A peça é inspirada no I Ching, livro escrito há 3.000 anos e considerado a “Bíblia” da filosofia chinesa. O Ancião, o Jovem e Ela são três personagens em um jogo constante de transformação, em que nada parece ser o que aparenta.

Uma conversa com Alex Bartelli, produtor e ator da peça “Mutações”, e a ideia de criar um espetáculo a partir do I Ching atraíram o diretor e ator André Guerreiro Lopes. “Essa peça foi como um desafio maravilhoso, como algo que a princípio parecia impossível”, conta Guerreiro, que gosta de criar a partir do risco de não saber antecipadamente o que vai fazer.

Ele já havia estudado o I Ching há muitos anos, em paralelo a práticas taoistas na Sociedade Taoista do Rio de Janeiro, com o mestre Wu Jyh Cherng, e em São Paulo, no Tai Chi Pai Lin, com o mestre Liu Pai Lin. “No entanto, nunca fui um especialista. Na criação do espetáculo tivemos a assessoria maravilhosa do Wagner Canalonga, atual sacerdote da Sociedade Taoista do Brasil”, comenta Guerreiro.

Para ele, “o I Ching tem tantas possibilidades, tantos caminhos possíveis, que o transpor para o palco é um salto no vazio”. “Sempre gosto de criar dessa forma, meus espetáculos sempre têm um início de criação propositadamente caótico, e no final sempre são obras muito estruturadas, com muita precisão nas atuações e na encenação”, conta.

Guerreiro ensina que há diversas abordagens possíveis do I Ching: política, filosófica, poética, oracular etc. “Parti dos signos, dos arquétipos e, sobretudo, dos oito trigramas: vento, água, céu, terra, montanha, lago, fogo e trovão. E também parti dos conceitos-chave do oráculo, os quais são extremamente teatrais: o jogo de oposições complementares, o conceito de um vazio pleno de possibilidades”.

No teatro de Guerreiro, tudo é dramaturgia: texto, espaço, luz, a movimentação dos atores, a música. “Há uma certa independência de expressão em cada elemento, para que a experiência do público seja total: imersiva, sensorial, intelectual, estética, emotiva; em que cada espectador tem sua porta de entrada pessoal”, diz o diretor.

A matéria do espetáculo, revela ele, “é o vento, uma ‘não matéria’ por excelência”. “Venta em cena, o cenário voa, o público e os atores sentem o vento. O vento é uma metáfora, ele se espalha suavemente como uma brisa agradável, transporta palavras, sementes, emoções, é penetrante, também pode gerar o caos, ciclones, destruição”.

Guerreiro ressalta que “a peça parte do universo filosófico do I Ching, mas para falar de algo completamente contemporâneo, atual e pertinente para nós ocidentais: a vida como um jogo permanente de transformações, com seus ápices e abismos, abordando o embate humano entre caos e controle”.

A proposta do diretor é levar o público a se questionar, a “se perder dentro do espetáculo” e, assim, “encontrar sentidos profundos, pessoais”. “Cada cena foi construída com um objetivo muito específico, mas o mais importante é como o público a lê. Gosto do assombro poético, do estranhamento. Se a peça continuar viva e reverberando, gerando novos significados na mente e nos corações de quem assistiu a ela, meu objetivo máximo foi alcançado”, finaliza.

AGENDA: “Mutações” estará em cartaz nos dias 30 e 31 de março; sábado, às 20h, e domingo, às 19h, no Sesc Palladium, rua Rio de Janeiro, 1.046. Não será permitida a entrada após o início do espetáculo.

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Público é cocriador

Para representar o embate humano entre caos e controle, o diretor André Guerreiro Lopes criou uma oposição entre um jovem e um ancião, que aparentemente representam a sabedoria e a insensatez juvenil. “Mas tudo vai se misturando, o poder do ancião traz em si a solidão, e a impulsividade do jovem tem um aspecto de liberdade. Há a presença de uma personagem mais mística, Ela, que, como o vento, gera desordem, caos, harmonia etc. É uma força na natureza”, comenta.

E contextualiza: “Em determinado momento o público se pergunta: o ancião e o jovem são dois personagens? Ou são o mesmo homem em momentos diferentes da vida? Um está sonhando com o outro? Ela está sonhando com os dois? O que de fato está acontecendo? Esses questionamentos são construídos para que o próprio espectador mergulhe no espetáculo em busca de suas respostas e, dessa forma, se aproprie da obra, sendo um cocriador. Abrimos portas como num grande poema cênico, lacunas que o público começa a preencher com seus próprios pensamentos e emoções”. (AED)

Virtude do vazio e impermanência

Gabriela Mellão já usava o I Ching como um oráculo com o próprio André Guerreiro Lopes, que dirigiu a peça “Ilhada em Mim”, escrita por ela e inspirada no universo de Sylvia Plath. No entanto, nenhum dois imaginava que fariam juntos “Mutações”.

Autora e diretora, Gabriela estudou cultura e civilização francesa na Sorbonne, em Paris, e dramaturgia e história do teatro moderno em Harvard, Boston.

“Compor uma dramaturgia para um livro escrito há 3.000 anos e considerado a ‘Bíblia’ da filosofia chinesa foi encarar uma responsabilidade enorme que me tirou inúmeras noites de sono, cuja criação é, para falar a verdade, um mistério para mim. A peça nasce a partir de uma boa base, evidentemente. Foi um mergulho intenso nos fundamentos dessa sabedoria, para, a partir daí, me lançar em voo livre. Segui intuitivamente o caminho da virtude do vazio”, declara Gabriela.

Ela acredita que o I Ching e o processo criativo de “Mutações” revelaram a ela que o vazio é, realmente, uma virtude. “O mistério é da ordem do acaso, mas para ele acontecer é necessário espaço e prontidão. É preciso um campo livre tanto quanto preparar a terra, adubá-la, lançar as sementes, para só então esperar a chuva. Me pergunto como as palavras vieram. Foi o vento que as trouxe? A perfeição da sincronicidade? O acaso é o eco do mistério, e o mistério é um mistério, tão concreto como essa peça, tão intangível como invisível no campo da irracionalidade”, diz.

A dramaturga explica que o espetáculo “se apropria dos conceitos de vazio e de mutação que estão na base do I Ching para falar da dança da impermanência da vida a partir de três personagens: um jovem, um ancião e uma mulher – ou de um personagem único que nasce do jogo e entre um homem em transformação, um homem entre tempos e as forças da natureza”.

E emenda: “Trata-se de uma obra poética, aberta às interpretações do público, é ele o verdadeiro coautor da peça. O espectador pode projetar-se em cena, tornando-a um espelhamento de suas próprias questões. A força da transformação da vida é evocada no palco com a presença do vento. Ele surge para colocar tudo em movimento. O vento tem pressa. Por mais que se corra, ele nos alcança. O vento tira, o vento rapta; também traz e renova – com fúria, delicadeza ou barbárie. Com sabedoria. O vento é o centro do fim dos tempos, dos recomeços também”.

Gabriela entende que a única coisa que permanece inalterável na vida é a própria mutação. “Tentei dar corpo ao conceito de mutação, falar do tempo, dos ciclos naturais da vida e também da presença do mistério no nosso dia a dia, dos milagres que nos atropelam cotidianamente fantasiados, por exemplo, de acaso. Quis apontar para a força divina que nos conecta, a tudo e a todos”.

E, ao mesmo tempo, “abrir espaço para o vazio, pensando-o na dramaturgia como conteúdo e forma”. “O vazio é cheio, na visão do I Ching. Sem vazio, sem silêncio, não há espaço para o surgimento de algo novo, algo vital”, ilustra ela.

A dramaturga diz que “há muitas lacunas na trama a serem preenchidas com a imaginação e a sensibilidade do espectador, na estrutura das cenas e também na linguagem poética do texto, porosa, ao encontro com o público”. 

Ela ressalta que, como tema, o vazio também está presente. “A partir dele surgem as transformações, as alterações de perspectivas, a possibilidade de passarmos, por exemplo, do desastre à arte ou mesmo do sublime ao fiasco”.

E finaliza: “Em uma fala provocadora da peça, o ancião diz ao jovem: ‘Voa menino, voa. Você e seu entulho de palavras, seu aglomerado de achismos, de convicções tão indiscutivelmente empenhadas em celebrar o óbvio, que sufocam o vazio que poderia salvar. A lacuna, o desejo, o fôlego, onde estão? O silêncio, para onde foi o silêncio?’. É a voz do avançar do tempo se impondo sobre a imaturidade do jovem”.