Discriminação

Pandemia agrava solidão, sofrimento mental e desemprego entre LGBTs, diz estudo

Sem serem aceitas em suas famílias, pessoas LGBTs vivem espécie de "quarentena dentro da quarentena", o que acentua quadros de sofrimento psicológico

Seg, 18/05/20 - 18h12
Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais e Unicamp, que integram o coletivo #VoteLGBT, identificaram que a quarentena deixou a comunidade queer mais vulnerável ao sofrimento mental e ao desemprego | Foto: Reprodução/Redes Sociais

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A dor da perda de um amigo se faz perceber na voz embargada de Giovanna Heliodoro. Aos 23 anos, ela precisa lidar com a morte prematura de Demétrio Campos, um companheiro na militância pelos direitos e pelo reconhecimento das pessoas transexuais e travestis que sucumbiu a um processo depressivo na madrugada do último domingo. “Há um tempo, ele vinha sofrendo com depressão, acúmulo de repressões e infelizmente não conseguiu vencer essa luta. Pedimos a todos que lembrem da pessoa incrível, amada e talentosa que ele foi”, lê-se em uma nota divulgada pela família nas redes sociais.

O lamento pela morte de Campos, um trágico acontecimento no Dia Internacional Contra LGBTfobia, é também um alerta, reforçando a necessidade de atenção a essa parcela da população que, no contexto de uma pandemia, pode vir a sofrer com o agravamento de um cenário de sofrimento psicológico e de vulnerabilidade socioeconômica. 

Ocorre que, no período em que vigoram medidas sanitárias de restrição de circulação de pessoas, lidar com problemas de saúde mental  é a maior preocupação para 44% das lésbicas, 34% dos gays, 47% das pessoas bissexuais e pansexuais e 42% das transexuais. Os dados são de uma recém-divulgada pesquisa realizada pelo coletivo #VoteLGBT, que ouviu mais de 10 mil pessoas de todo país por meio de um questionário distribuído virtualmente, sendo 90% dos respondentes identificados como cisgêneros e, 10%, como transexuais.

O estudo revelou ainda que 28% dos entrevistados já receberam diagnóstico prévio de depressão - marca que é quase quatro vezes maior do registrado entre a população brasileira, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) em 2013. 

Os autores do levantamento, ligados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lembram que “LGBTs já conviviam com esses males em maior frequência do que as demais pessoas. Segundo os dados apresentados pela Associação Americana de Psiquiatria, esse grupo populacional tem mais que o dobro de chances de apresentarem alguma condição de saúde mental durante a vida, quando comparados a seus pares não-LGBTs”.

Desespero

“Um dos pontos que mais chamou atenção é esse agravamento da saúde mental, considerando que já havia um problema de saúde mental pré-existente e que se agrava com a pandemia”, observa a demógrafa Fernanda De Lena, uma das pesquisadoras envolvidas no projeto. Para ela, surpreende também “a rapidez como a comunidade LGBT foi atingida. A gente já tem conhecimento das dificuldades dessas pessoas. Mas, agora, ficamos assustados, em estado de alerta”, indica. 

“Eu me perco muito diante das situações que acontecem comigo, com os meus, com pessoas próximas de mim. É quando entro em desespero”, desabafa Giovanna. “A nossa saúde mental é afetada de forma simbólica e indireta. Nós, travestis e trans, somos pessoas que estão vulneráveis, pessoas que passam por um processo interno e externo de não se reconhecer doente... Pessoas que já eram vulneráveis e que caem, caem diante da solidão, pela dor de não conseguir se manter”, lamenta.

“Ainda que a gente crie essas redes de apoio entre nós mesmas, existe uma série de fatores que impede a manutenção dessas ferramentas - o desemprego, por exemplo, pode impedir esse contato virtual. E, além disso, o auxílio e o acompanhamento psicológico não são uma realidade para boa parte de nós”, reforça ela, acrescentando considerar uma difícil “conseguir se manter sã no meio disso tudo”.

Vulnerabilidade socioeconômica

O mapeamento mediu os impactos financeiros da crise sobre essa população: 20,7% dos entrevistados disseram não possuir renda e 21,6% afirmaram estar desempregados. O índice é quase o dobro se comparado com o de não ocupação da população brasileira, que é de 12,2%, segundo a pesquisa Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua), divulgada pelo IBGE em abril.

“Um dos maiores problemas enfrentados pelos indivíduos LGBTs está ligado à vulnerabilidade sócio-econômica. Um grupo em que há maior dificuldade de encontrar trabalho, instabilidade financeira que traz ansiedade e é um fator de risco para o desenvolvimento de quadros depressivos”, analisa Fernanda.

Doutorando em demografia, Samuel Silva explica que o #VoteLGBT já havia identificado, a partir de outras pesquisas, que a taxa de desemprego neste segmento social era maior que a média nacional. “Comparando com a composição do levantamento feito na Parada do Orgulho LGBT do ano passado, podemos perceber que há um aumento, uma acentuação dessa desigualdade de oportunidades”, sinaliza o estudioso, apontando que a pesquisa só deve ser divulgada integralmente em junho.

Giovanna Heliodoro é uma dessas pessoas que, com a crise provocada pela Covid-19, foram desligadas da empresa em que trabalhavam. “O motivo foi um revés financeiro, causado pelas atuais circunstâncias, mas acredito que podem haver outros fatores: uma travesti preta, ocupando lugar no mercado de trabalho, essas pessoas serão as primeiras a serem expulsas”, pontua, com firmeza. Com sua mãe impossibilitada de trabalhar, a remuneração da analista de redes sociais era a única fonte de renda da família.

Diante das dificuldades, Giovanna só pensa em ajudar outras travestis e transexuais que possam estar em pior situação. “Eu tenho amigos e amigas que estão enfrentando um dia a dia até mais problemáticas, que não tem um ambiente familiar acolhedor ou que foram expulsos de suas casas por serem quem são”, lembra. Por isso, ela integra redes de apoio, mantendo contato por meio de chamadas de vídeo com essas pessoas.

Segregação

No país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo dados da Transpect versus Transphobia Worldwide, e que presencia um aumento de 13% no número de mortes violentas dessa população desde a chegada da pandemia, conforme apontamentos da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), é sintomático que Demétrio Campos tenha perdido a vida no Dia Internacional Contra LGBTfobia, celebrado desde 2004.

O 17 de maio foi escolhido como marco na luta contra as violências e discriminações ante a livre expressão da orientação sexual e da identidade de gênero porque foi nesse dia que, em 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) desclassificou a homossexualidade como um transtorno mental. A transexualidade, no entanto, só foi retirada da classificação oficial de doenças, CID-11, em 25 de maio de 2019, quase três décadas depois.

Agora, no primeiro ano em que também poderiam celebrar a despatologização de suas identidades e sexualidades, a pandemia do novo coronavírus põe a comemoração em suspenso e causa apreensão em toda comunidade queer.

Solidão em família

Com a suspensão do funcionamento de serviços não essenciais e a adoção mais massificada do teletrabalho, a dinâmica doméstica tornou-se outra. Neste cenário, problemas no convívio familiar foram citados como maior dificuldade durante o isolamento social por 10% dos ouvidos pela pesquisa do coletivo #VoteLGBT. Desses, um em cada dois estão na faixa etária entre 15 e 24 anos.

São dados que demonstram “algumas das dificuldades enfrentadas pelos jovens em seu próprio ambiente residencial. Adequação às novas regras de convívio social são o segundo fator de maior preocupação entre gays (19%) e lésbicas (14%)”, reforçam os autores do estudo. 

“Eu saí de Belo Horizonte e vim para a casa do meu namorado, em Vitória (ES), por não mais suportar a convivência com meu pai. Na vida cotidiana, sem a pandemia da Covid-19, nós quase não nos vemos. Mas, na quarentena, fomos obrigados a conviver e isso gerou atrito demais. Sei que nossa relação é frágil pelo fato de eu ser gay. Em qualquer situação, sinto o peso duplo do julgamento”, sinaliza Antônio

, 22.

“Por não suportar essa situação, infelizmente transgredi a quarentena para vir para outra cidade, em outro Estado”, lamenta. Apesar de se sentirem rejeitados, dados preliminares do estudo antecipados a O TEMPO demonstram que 93% dos entrevistados concordam com as regras sanitárias em vigor.

“Desde que cheguei aqui, me sinto em paz. Sei também que sou privilegiado em ter um lugar para passar a quarentena, fora do ambiente tóxico”, completa Antônio. De fato, a vulnerabilidade financeira, muitas vezes, pode levar LGBTs a buscar, no seio da família, um lugar de aconchego. O que encontram, todavia, é um lugar hostil.

Falta empatia

Hostilidade foi o que experimentou a capixaba Luana

. Aos 17 anos, ela via passear diante de seus olhos diversas manifestações em razão do Dia Internacional Contra LGBTfobia nas redes sociais. Decidiu aderir ao movimento e anunciou publicamente: “Mãe e familiares, eu sou bissexual”. A estudante sentiu um formigamento, como se desfizesse de um fardo e pudesse, pela primeira vez, manifestar sua sexualidade abertamente. Ao mesmo tempo se sentia apreensiva.

Não demorou para que sua mãe visse a publicação. Descontrolada, inquiriu Luana: “Seu namorado sabe disso? Ele aceita isso? Ele tem família! O que eles vão pensar? Você imaginou que sua avó vai ficar sabendo disso?”. Na sequência, exigia que o post fosse apagado, o que a estudante se recusou a fazer. “Ela chutou um móvel, falou coisas horríveis, se perguntando onde é que ela havia errado como mãe… Pensei que fosse me agredir. Depois, ela me expulsou de casa”, lamenta.

Luana deve ir viver com seu irmão - “ele é a melhor pessoa do mundo, ele me compreende” - e está sendo apoiada por amigos e pelo namorado. Mas, obviamente, ficou abalada diante dos acontecimentos. “Eu já tive outros ataques de ansiedade, quando não consigo parar de chorar e sinto vontade de me machucar”, conta.

Assim como ela, Antônio sofreu com ideação suicida quando, em 2017, diante da forte cobrança dos primeiros anos na universidade, a que se somavam um maior distanciamento de amigos do ensino médio e, ainda, a incompreensão de sua família sobre a sua sexualidade, viu-se com crises ansiosas. Ele só buscou ajuda, por intermédio e insistência de uma amiga e de um professor, um ano depois.

Quarentena dentro da quarentena

Em casos em que a convivência familiar parece custosa ou quando a vítima de LGBTfobia é expulsa ou opta por sair de casa, recorrer a redes de apoio pode ser uma alternativa na busca por algum alento. “Essa rede de apoio geralmente é composta por amizades mais próximas e/ou familiares que não sejam LGBTfóbicos. Manter-se em contato com essa rede aumenta a sensação de acolhimento e permite que pessoas LGBTI+ possam ser autenticamente elas mesmas. Isso fortalece”, aponta o psicólogo Samuel Silva (homônimo do pesquisador citado nesta reportagem).

O especialista em terapia comportamental acredita que a supressão dos espaços de maior aceitação pode agravar o sofrimento. “Estar confinado num lar que reprime a subjetividade é o mesmo que estar preso e impossibilitado efetivamente de vivenciar sentimentos positivos como alegria, autorrealização e amor, por exemplo. Pessoas LGBTI+ que estão em lares LGBTIfóbicos vivem uma espécie de quarentena dentro da quarentena: uma quarentena as protege da pandemia, a outra de sofrer violências diversas frutos de relações familiares opressoras”, aponta.

Silva estuda as demandas específicas da comunidade queer e defende que a internet pode ser uma aliada. “Uma vez que o espaço físico familiar pode ser violento, pode ser importante criar espaços virtuais de afeto para se fortalecer para enfrentar e sobreviver à realidade”, examina. Vale também buscar ajuda em organizações e entidades, muitos que, neste momento, disponibilizam suporte gratuito específico.

“E não esquecer que essa configuração no seu lar é temporária e vai passar, que não há nada errado em ser LGBTI+ e que você tem todo direito de ser quem é esteja onde estiver”, aconselha o profissional. 

CVV. O Centro de Valorização da Vida promove apoio emocional e de prevenção do suicídio, com atendimento gratuito e sob sigilo a todos que querem e precisam conversar. Telefone 188, email e chat 24 horas todos os dias.

Nomes fictícios

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