Geração Canguru

Pandemia é estímulo para que jovens permaneçam ainda mais tempo na casa dos pais

No Brasil, antes da Covid-19, um em cada quatro jovens vivia com sua família; agora, tendência é que esse número aumente com pessoas retornando ao seio familiar

Qua, 30/09/20 - 03h00
Ao retornar para casa, a divisão de tarefas e novos acordos devem ser negociados entre pais e filhos para que a relação não azede. | Foto: Pixabay

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Foi de supetão, sem qualquer planejamento: o ator Cristiano Braga, 29, conseguiu uma carona, encaixotou parte de seus pertences e voltou para a casa de seus pais, que vivem em Lagoa da Prata, na região Centro-Oeste de Minas. Dessa vez, diferentemente de outras oportunidades, a viagem não era só para uma visita em um fim de semana. Ele não tinha mais previsão de quando voltaria a viver na capital mineira, onde se estabeleceu há cerca de dez anos. Assim, o caminho que fazia agora era o exato oposto daquela primeira experiência. 

Embora tivesse passado a viver sozinho já no final da adolescência, ao retornar para o seio familiar, Braga engrossa as estatísticas de uma tendência crescente em todo o mundo – e na América Latina, em especial. Acontece que, nos últimos anos, filhos têm adiado cada vez mais a saída da casa de seus pais. O comportamento fez que esse grupo de pessoas, muito associado à classe média, ficasse conhecido pelo nome de Geração Canguru. No Brasil, um a cada quatro jovens de 25 a 34 anos ainda vive com a família, mesmo possuindo renda própria. O dado mais recente sobre o tema foi levantado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) em 2015. E, agora, a pandemia da Covid-19 pode acentuar o fenômeno.

Foi justamente a emergência de saúde que motivou Braga a retornar para a casa paterna. Primeiro, veio a notícia de que as aulas do curso de teatro da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) haviam sido suspensas como medida de contenção da proliferação do novo coronavírus. Ele ainda permaneceu um mês sozinho, no apartamento em que vivia. Já angustiado por conta da escalada de mortes e do medo de ele mesmo se infectar, recebeu um comunicado sobre o aumento do valor do aluguel do imóvel. Diante do cenário de adversidades socioeconômicas, decidiu rescindir o contrato e retornar para um lugar que estava muito associado à infância e à adolescência. “Não é o ambiente a que eu, já adulto, estava habituado. Então, no início, foi bem difícil. Eu demorei até encontrar o meu lugar dentro de casa, até entender toda a movimentação, a rotina, os horários, que eram todos diferentes dos meus”, observa.

Quem não reclama da novidade é Adelaide Lopes, 63, que é mãe do ator. “Apesar dos pesares, para mim foi muito bom ter a casa cheia de novo. Eu pensava muito sobre como era antes de eles (Braga e sua irmã, Camila) irem para BH. E agora eles estão aqui de novo. Nunca imaginei que isso iria acontecer”, comenta, revelando que toda a dinâmica doméstica se transformou nos últimos meses.

Relação. A exemplo do que relatam Adelaide e Braga, ainda que empurrados por um contexto adverso, quando a decisão de voltar para a casa dos pais se dá por escolha mais que por outros fatores, a tendência é que a relação seja menos conflituosa. É o que observa a psicóloga e educadora parental Fernanda Teles. “Há pessoas que estão encarando esse momento como uma oportunidade que talvez não viesse a se repetir. Gente que está criando uma relação mais íntima com os pais, que os está observando por um olhar amadurecido, o que pode ser incrível”, analisa. 

“De maneira geral, no atual cenário, a Geração Canguru vai incorporar também aquele jovem que havia conseguido dar passos e conquistado sua independência. Mas, de repente, diante do inesperado, ele precisou retornar para esta casa de onde havia saído”, complementa a psicóloga clínica Telma Cunha. “Ocorre que esse indivíduo não está preparado para um retorno abrupto, o que pode gerar frustração. Por isso, é importante, neste momento, que todos entendam que, por vezes, precisamos dar passos para trás para depois avançar de novo”, diz.

E, para além da frustração, em outros contextos, esse retorno pode se tornar mais belicoso. “Imagine para uma mãe solo, que perde o emprego e as condições de se manter sozinha e que precisa retornar para a casa de seus familiares na companhia do filho (ou dos filhos); imagine no caso de um homem que fica desempregado e, com a autoestima baixa, já que foi cobrado que tivesse sucesso e pensa que fracassou, precisa voltar a viver com seus pais… São situações em que a dinâmica doméstica pode se tornar mais complicada”, situa Fernanda.

Para que a relação não azede, a palavra-chave é “respeito”, diz a educadora parental. “Devemos compreender a rotina deles, seus horários e ritos”, comenta, lembrando que é importante especial atenção, pois, “na casa dos pais, tendemos a nos acomodar”. Por isso, vale ficar em alerta para que se evite de ocupar o espaço de forma abusiva e para garantir a privacidade dos donos da casa. “Devemos cuidar dessa relação e ajudar nas tarefas, para que a convivência fique agradável”, sugere. 

Neste sentido, Braga confessa que demorou até conseguir descobrir meios para ajudar nas tarefas do dia a dia. “No início, eu não conseguia ajudar em quase nada. Hoje, me sinto mais útil, mas ainda acho que posso melhorar”, diz. Mas Adelaide não reclama. “O serviço aumentou muito. Antes, eu ficava sozinha. Meu marido viajava e meus filhos não ficavam aqui. Agora estamos em quatro. Tem muita coisa para fazer todo dia. Mas não tenho do que me queixar. Sinto que todo mundo está fazendo a sua parte”, garante.

Estada prolongada na casa dos pais casa pode causar déficit de amadurecimento

No caso daqueles que, efetivamente, nunca saíram da casa de seus pais, a relação neste momento pode ser mais fácil. A psicóloga Fernanda Teles, entretanto, alerta que essa permanência prolongada é geradora de efeitos danosos para pais e filhos. “Este é um fenômeno cada vez mais comum e que é uma repercussão do que aconteceu na infância. Pais e mães, principalmente, costumam ter a certeza de saber o que é melhor para seus filhos. Então, acabam vetando que eles se manifestem por si mesmos, e eles acabam não desenvolvendo um senso de confiança, pois não têm muito espaço para exercitar sua autonomia”, observa. 

O psiquiatra e mestre em saúde coletiva Rodrigo D’Angelis adiciona que há diversos elementos que contribuem para que os filhos demorem mais a sair da casa de seus pais. “Há uma mudança cultural. Hoje, as pessoas se casam mais tarde, e, no Brasil, deixar o seio familiar ainda está muito ligado ao matrimônio. Além disso, a independência financeira pode vir mais tarde, pois muitos vão estudar primeiro antes de ingressar em uma empresa. Sem contar que o custo de vida nas grandes cidades, para onde tantos ambicionam ir, é alto”, pontua. “Além disso, jovens podem experimentar uma sensação de autonomia mesmo vivendo sob mesmo teto de seus pais – e, por isso, não vão sentir necessidade de deixar esse lugar”, completa. 

Essa demora para deixar a casa dos pais pode implicar em um risco de a relação entre as partes tornar-se de codependência, deixando de ser saudável. Além disso, alguns estudiosos indicam que o fenômeno tem ressonância na arquitetura encefálica: sem estímulo, a última parte do cérebro a amadurecer – ligada à capacidade de organização, planejamento, controle de impulsos e tomada de decisão – pode ser prejudicada.

A síndrome do ninho vazio, outra vez

Ao mesmo tempo que celebra a presença dos filhos em sua casa, Adelaide Lopes se mostra apreensiva quando pensa que, no próximo ano, eles devem voltar a viver em Belo Horizonte. Da última vez que, subitamente, se viu sozinha em casa, a professora aposentada passou por situações de intenso sofrimento e chegou a desenvolver quadros depressivos. 

“Eu já fico pensando nessa despedida. Com eles em casa, a gente quer fazer tudo diferente. Quando eles forem embora, acho que vou passar por tudo que passei de novo”, lamenta. Cristiano Braga se mostra preocupado com um possível retorno da sensação de síndrome do ninho vazio. “Da última vez que fui embora foi muito ruim para ela”, diz. No entanto, como são adultos e independentes, acredita que o impacto será menor. “Vai ser difícil para a gente também”, confessa. 

O psiquiatra Rodrigo D’Angelis indica que a mudança dos filhos reverbera em uma sensação de luto para alguns pais e, sobretudo, mães. Por isso, recomenda cuidado com os impactos nesse processo e lembra que é importante, para os que ficam, buscar maneiras de lidar com o tempo ocioso e com a ausência em uma casa antes cheia. As ferramentas digitais são ótimas aliadas para manter contato, mas não são a única alternativa. D’Angelis lembra ser fundamental que, depois de tanto tempo se dedicando aos filhos, os pais busquem realizar tarefas para si próprios, em um esforço de autocuidado.

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