Relacionamento

Para jovens, morar junto já não carrega peso equivalente ao de um casamento

Apesar de revelar um passo importante na relação, dividir o mesmo teto já não tem o mesmo significado de décadas passadas

Seg, 16/05/22 - 03h00
Para as novas gerações, 'juntar as escovas de dentes' já não tem o mesmo peso de um casamento, sendo uma decisão encarada de um ponto de vista mais prático | Foto: Pixabay

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Andreia Santos, 30, vivia em Belo Horizonte há pouco mais de dois anos quando o então namorado, com quem se relacionava havia mais de uma década, mudou-se para a capital. Menos como uma evolução daquele vínculo e mais como forma de economizarem, evitando a duplicidade de despesas como aluguel, condomínio e plano de internet banda larga, eles optaram por morar juntos. “Mas, desde o início, deixei claro que aquela era uma decisão prática, que não significava um passo a mais, que não significava um ‘casamento’”, lembra, reconhecendo que, em meio às incertezas, já vinha gestando em si o desejo de terminar o namoro, que via sem muitas perspectivas. “Moramos juntos por 11 meses. Nesse período, nosso relacionamento, que estava deteriorado, melhorou. Mas, mesmo assim, por questões minhas, optei pelo término”, expõe. 

A história de Andreia é ilustrativa de como paradigmas sociais, sagrados décadas atrás, soam agora, para muitos, ultrapassados. Os modos de morar e de se relacionar, por exemplo, se modificaram significativamente ao longo das últimas décadas. E, se antes dividir uma casa significava um importante passo para um casal, geralmente algo que acontecia só depois do casamento, hoje tornou-se mais comum que as pessoas simplesmente passem a viver juntas por razões práticas – como a economia de despesas domésticas. 

Um estudo de 2018, repercutido pelo conglomerado de comunicação britânico BBC, mostrou que, no Reino Unido, o número de casais que passaram a morar juntos está ultrapassando o número de pessoas casadas e de famílias com um dos pais. O dado é um indicativo de que mais pessoas têm optado por morar com suas parcerias, saindo do ceio familiar de origem, mas sem contrair o matrimônio. 

O psicólogo Pedro Teixeira de Almeida, mestrando em estudos psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lembra que o fenômeno tem diversos atravessamentos e pode ser percebido também no Brasil. Contudo, ele pondera que, apesar de parecer apenas uma decisão prática, o ato de juntar escovas de dentes ainda é motivo de inquietação e, nos consultórios, aparece como motivo de certa angústia. Para ele, somente algumas vezes essa escolha ainda tem significado semelhante ao de se casar, representando um importante passo para a relação – ainda que dispense certos rituais tradicionais. 

“Eu diria não somente que a decisão de morar juntos às vezes carrega esse peso, como também a própria decisão de mudar o estatuto da relação para ‘namoro’ pode carregar um peso enorme. Muitas vezes, por mais que os combinados de uma relação já sejam os mesmos de um namoro, isto é, exclusividade, um certo contato frequente e íntimo (e aqui é claro que existem outros modelos de relação), a palavra ‘namoro’ ainda assusta algumas pessoas. Acredito que isso se dê em conjunto com a palavra, pois carregamos uma série de fantasmas e expectativas quando essa mudança de estatuto entra em jogo”, argumenta.  

“O medo de repetir padrões de comportamento que se tornaram problemas em outras relações, de escolher se relacionar com alguém que não cumpre com todo o check-list do que esperamos de um relacionamento ideal, de cair na rotina, de se envolver demais com alguém e ser abandonado. Afinal de contas, o ato de enamorar-se por alguém é acompanhado por uma abertura, uma vulnerabilidade em relação às ações dessa pessoa”, completa. 

Para ele, quando falamos da decisão de morar juntos, esse peso é ainda maior. “Afinal, adicionamos elementos práticos semelhantes ao de um processo de divórcio a uma possível separação. Quer dizer, se no término de um namoro temos que lidar com uma série de questões emocionais, quando o casal mora junto, para além dessas questões, temos que dividir móveis, procurar um novo local para morar, compartilhar a guarda de um pet, e ainda trabalhar, pagar as contas etc.”, pontua. 

Maturidade

“Eu acho que morar junto é uma alternativa para dividir despesas, mas não só isso. É uma oportunidade também para conhecer a maturidade do outro, para saber como vai ser o convívio. E, às vezes, é algo que até substitui o casamento. Na prática, por mais que não tenha tido um ritual formal, você está junto como se fosse casado”, opina o empresário Igor França, 28. A companheira dele, Carla Batista tem opinião semelhante. “Para mim, morar junto ainda se configura como um namoro. Mas é também como uma prévia do casamento, tipo um ‘test drive’, sabe? Com o convívio a gente enxerga mais os defeitos e qualidades da outra pessoa”, diz.

Nesse sentido, Pedro Almeida adverte que, depois de tomada a decisão, se o casal ainda não teve tempo para maturar a relação, são significativas as chances de desentendimento. “Se lidar com o outro já é complicado em relações de trabalho e amizade, em relacionamentos amorosos isso se intensifica, porque se relacionar com o outro envolve um certo jogo de renúncias, renúncia de liberdade, de uma multiplicidade de parceiros sexuais (mesmo em algumas modalidades de relações não monogâmicas), de tempo etc. Dentro de uma configuração em que o casal se encontra somente aos fins de semana, temos a saudade, a carência e o tesão. Ao morar com alguém, esse tempo de ‘fazer falta’, que fortalece o desejo, é obstruído por uma presença constante”, opina.  

“Na pandemia, com o home office, essa presença e esse contato se tornaram ainda mais massivos. E, nessa intimidade intensa, muitas vezes percebemos nossas parcerias de maneira diferente. Pequenos aspectos rotineiros da manutenção de uma casa se tornam motivo de conflito, como todo cuidado com a limpeza, a higiene pessoal, a alimentação. Quando algo desses incômodos que temos com o outro não é tratado, conversado, há uma tendência de que esse conflito se escale, transformando-se numa briga”, situa, lembrando que, nesses casos, às vezes um fato completamente banal, como esquecer de retirar o lixo, se torna gatilho de uma grande discussão sobre por que duas pessoas não devem conviver juntas. 

Curiosamente, pessoas mais jovens, que, estatisticamente, tendem a ir morar com suas parcerias sem tanta cerimônia, são também as que ficam menos tempo dividindo o lar. Conforme publicação da BBC, pesquisadores do University College de Londres (UCL) e da Universidade Saint Andrews, no Reino Unido, examinaram uma amostra de 3.233 pessoas de três faixas etárias: os nascidos entre 1974 e 1979, 1980 e 1984 e entre 1985 e 1990, observados entre 1991 e 2016. Eles perceberam que 27% dos casais dos dois grupos mais velhos separavam-se em até dois anos após morarem juntos, percentual que saltou para 43% no grupo mais jovem. O dado pode ser indício de que não só a decisão de morar junto, como também a de se separar, é tomada com mais facilidade pelo segundo grupo. 

O psicólogo acredita que uma série de fatores, desde uma mudança discursiva até mesmo elementos econômicos, influenciam essa tendência. Além disso, mudanças relacionadas às dinâmicas amorosas também podem estar por trás do fenômeno. “Se até pouco tempo ter um filho era o passo lógico depois de um casamento, quando não era o elemento propulsor desse, talvez as gerações de hoje aspirem conquistar uma série de ambições e realizações de projetos pessoais, antes de considerarem a possibilidade de cuidar de uma criança. Meu ponto é que, talvez, sem esses elementos externos à relação, que de certa maneira seguravam muitos casais juntos, haja mais espaço para uma convivência íntima, o que muitas vezes não vem sem conflitos”, diz. 

Aos olhos da lei

A advogada Thais Câmara, especializada em direito de família e sucessões, explica que o ato de morar junto pode ser considerado um indício de que o casal estabeleceu um vínculo que pode ser classificado como união estável. Nesse caso, “as consequências são as mesmas de um casamento: partilha de bens (a depender do regime) e possibilidade de pagar pensão alimentícia”, detalha. “A diferença entre um e outro é a necessidade de prova do vínculo, que uma das partes vai ter que fazer caso a outra negue a relação”, informa. 

Contudo, Thais lembra que dividir uma casa não configura, instantaneamente, uma união estável. “Tem que analisar qual o intuito das pessoas, se elas têm a intenção de formarem uma família, de viverem como se um casal fossem. Também temos que analisar o tempo dessa convivência, pois a lei exige que a relação seja contínua e duradoura, mas sem determinar um período mínimo para que haja efeitos jurídicos”, situa.

O entendimento legal está alinhado com a opinião popular sobre o peso dos relacionamentos para além dos rituais e burocracias.  “Para mim, morar junto é praticamente a mesma coisa que se casar. E, na verdade, acho essa escolha até mais interessante, porque não acredito que, para a união existir, seja necessário casar na igreja e/ou oficializar o vínculo em um cartório”, comenta o profissional do marketing Lucas Lamim. Quem concorda é a organizadora de eventos Paola Vezzaro, 24. “O mais importante, para mim, é como as pessoas se sentem e se há uma boa convivência. Não vai ser um papel que vai mudar o sentimento de alguém. Então, acho que, sim, morar junto equivale ao casamento”, diz.

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