Quem acompanha a novela “Travessia”, trama de Gloria Perez exibida no horário nobre da Globo, já deve ter assistido ao drama vivido por Theo, interpretado pelo ator Ricardo Silva, e por sua família. Embora o personagem possa parecer, a princípio, apenas um adolescente sem limites, Theo enfrenta um problema grave: o vício em jogos eletrônicos. A situação do garoto – que no folhetim acaba incluindo surtos de abstinência, que o fazem fugir dos pais, ter atitudes agressivas e até mesmo causar um incêndio no próprio quarto – não é um problema que está longe da realidade, mesmo que pareça assustadora demais. 

Não por acaso, o distúrbio – denominado gaming disorder ou Transtorno de Jogo pela Internet (TJI) – foi reconhecido formalmente como uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2022. Segundo a entidade, a doença pode ser definida como um comportamento que prejudica a capacidade de controlar o consumo de games, a ponto de jogos passarem a ser priorizados em detrimento de outras atividades e interesses. 

No Brasil, o cenário do distúrbio tem números assustadores. Conforme uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 28% dos adolescentes fazem uso problemático de jogos eletrônicos e se encaixam nos critérios do TJI. O estudo, publicado no ano passado, ouviu cerca de 4.000 alunos com idades entre 12 e 14 anos.  

A relação com os jogos eletrônicos é uma preocupação para a designer de brinquedos Marina Leite (@ticoticoreibahia). Mãe de três filhos, de 2, 7 e 12 anos, ela conta que tem observado que o mais velho tem passado cada vez mais tempo no quarto jogando jogos e conversando com amigos pela internet. “Sinto que isso atrapalha a socialização. Se a gente não forçar a barra, ele não quer ir a lugar nenhum com a família. Sinto também que ele perdeu muito o hábito de ler e estudar”, diz. Segundo Marina, mesmo que seja calmo, o filho acaba se alterando quando a família pede que ele desligue o computador. “Às vezes, ele esquece até que tem que se alimentar. Se a gente não chama e não faz sair, ele vai ficando (no computador)”.  

Para ela, uma das grandes culpadas pelo crescimento do uso do computador, principalmente entre os mais novos, é a correria do dia a dia dos pais. “Fico sobrecarregada com tarefas domésticas que parecem não ter fim, muita demanda do (filho) menorzinho, e acabamos não conseguindo dar tanta atenção”, desabafa.  

Mas, mesmo com a sobrecarga, a designer pontua que tem tentado driblar a situação levando os filhos para passeios ao ar livre. A conversa com as crianças sobre os jogos também ocorre dentro de casa, não só pelo hábito de jogar, mas também pelos próprios conteúdos consumidos pelo filho. “Às vezes acho que os jogos que ele joga não são próprios para a idade dele, tem muita violência”, diz ela, que avalia a presença dos eletrônicos de forma negativa. “Acho que eles vieram mais para atrapalhar que ajudar. Me sinto triste e impotente diante da situação”, confessa.  

A preocupação de Marina não é para menos, já que a relação com os jogos pode se tornar um assunto mais grave em determinados momentos, tornando-se um transtorno mental. E o diagnóstico nem sempre é o mais fácil. Segundo a OMS, ele precisa ser baseado em vários sintomas, que incluem a falta de controle sobre o impulso de jogar jogos eletrônicos, a tendência em priorizá-los em detrimento de outras obrigações e um envolvimento contínuo e intenso na atividade, mesmo diante de consequências negativas, que consome várias horas do dia.  

Apesar de ser um transtorno tratável – assim como outros casos de compulsão –, a relação doentia com os jogos deve ser um cenário evitado. É isso o que aponta a psicóloga Renata Borja, especialista em terapia cognitivo-comportamental. Ela pontua que a melhor maneira de lidar com o problema é a prevenção. “É importante que a gente fale sobre como prevenir. Os pais devem determinar quantas horas as crianças ficam diante dos jogos. As telas também precisam ser evitadas. Sabemos que, até os 3 anos de idade, se for possível, elas não devem ter contato com nenhuma”, explica.  

A criação de novas rotinas e outros tipos de atividade também são fatores fundamentais. “O esporte é sensacional para isso”, destaca. A psicóloga ressalta também que é importante que os pais consigam impor limites. “O limite deve existir com o afeto na mesma medida. Não pode ser na base da briga, você não pode tomar as coisas à força. As pessoas costumam achar que brigar é colocar limite, mas não necessariamente”. 

Caso a situação já tenha chegado a um nível mais grave, a orientação é procurar ajuda profissional, não só para os filhos, mas também para os próprios responsáveis pelas crianças. “Se não houver um trabalho em parceria com os pais, não dará certo”, afirma.  

A especialista ressalta ainda a importância do exemplo vindo de casa. “Muitas crianças chegam para mim e dizem que os pais só ficam no celular, que não há um diálogo. O tempo em família é importante e, muitas vezes, não existe, não é criado um hábito de sair para passear, de fazerem algo juntos”, diz.  

A PhD em neurociência, psicopedagoga e psicanalista Angela Mathylde Soares reforça o coro, destacando a importância da convivência em família. “É preciso ter rotina, regras e um momento social entre a família. Não adianta só ir para a casa da vovó ou ir para a casa dos amigos. Isso é muito legal, mas é preciso que a família também se socialize”, ressalta ela. “Como isso pode ser feito? Indo ao cinema juntos, cozinhando ou se engajando em atividades que tragam essa interação entre os membros, e não mais uma distração”, complementa.