Relacionamentos tóxicos deixam marcas invisíveis

Quando o conto de fadas dá lugar ao ciúme exagerado, à opressão e às ameaças, é hora de buscar ajuda, inclusive profissional

Dom, 26/11/17 - 02h00
Prisão. Caio viveu um relacionamento abusivo durante cinco meses. Ele diz que a ex-namorada tinha ciúme excessivo e invadia o seu espaço individual. | Foto: Fred Magno

Um relacionamento que nunca deixou marcas físicas. Mas os traumas sofridos durante dois anos foram tantos que deixaram feridas na mente e na alma da jornalista Isabele Leone, 29. Ela ouvia do parceiro que “era louca”, ao som de risadas. Parou de conviver com amigos e família. Perdeu trabalho e, o mais grave, a liberdade de ser ela mesma. “Eu tinha 24, e ele, mais de 30. Eu só podia ser amiga dos amigos dele. Por ciúmes, ele me fez parar de trabalhar com coisas que eu gostava. Tornei-me depressiva. Na frente da minha família, eu ficava quieta e fechada, enquanto ele aparentava ser o ‘mocinho’ e o ‘normal’ ”, diz.

O tormento só acabou quando ela passou a fazer terapia e decidiu confrontar o opressor. “Ele inventou uma viagem para ir para São Paulo com amigos. Aí eu propus: vá, e eu vou à Itália rever meus amigos, sozinha. É claro que ele não concordou, mas viajei assim mesmo”, diz. Isabele passou quase seis meses fora do país e, quando retornou, soube do paradeiro do ex-namorado. “Ele já estava com outra mulher e fazendo as mesmas coisas”, afirma. Hoje, ela tem uma vida normal.

Já a estudante Marcele (nome fictício), 23, experimentou uma relação abusiva por um ano e meio, até 2015. “Ele só conversava comigo quando queria. Bloqueava-me nas redes sociais (mesmo a gente morando no mesmo apartamento) porque falava que eu não o deixava em paz”, comenta. “Eu tinha crises de ansiedade e ligava para minha mãe, que morava do outro lado da cidade, para ajudar a me acalmar”, diz.

E as jovens não são exceção. O Ligue 180 – ligado à Central de Atendimento à Mulher – é um serviço de utilidade pública de emergência, de abrangência nacional, que pode ser acessado gratuitamente 24 horas por dia, e recebe milhares de denúncias diariamente. Os atendimentos distribuem-se entre pedidos de informações, reclamações, sugestões, elogios e relatos de situações de violência.

Em 2016, em todo o país, foram 140.350 atendimentos que corresponderam a relatos de violência – 12,38% do total. Dentre eles, 31,80% referiam-se à violência psicológica; 6,01% à violência moral; e 1,86% era por conta de violência patrimonial.

A Lei Maria da Penha especifica que a violência psicológica é aquela que causa dano emocional e diminuição da autoestima. Já a moral se refere a uma conduta que provoca calúnia, difamação ou injúria. Por fim, a violência patrimonial se refere à retenção, subtração, destruição parcial ou total de bens pessoais, valores ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer as próprias necessidades.

Sexo oposto. Apesar de os homens aparecerem como dominadores na maioria dos casos, não são raras as situações nas quais eles são vítimas. Foi exatamente isso que aconteceu com o profissional de TI Caio (nome fictício), 28. A relação complicada durou cinco meses, tempo exato para que ele percebesse que havia algo de errado. “Eu sabia que ela havia acabado de terminar um casamento bem complicado. No começo, as coisas iam bem. Mas, com o passar dos meses, a situação foi piorando”, declara.

Caio detalha que a violência invisível incluía ciúme excessivo, invasão de espaço e perseguição. “Ela monitorava quem interagia comigo nas redes sociais, tentando controlar esse contato. Chegou ao ponto de perseguir pessoas que eu já conhecia há anos”, narra.

Até que ele viu a gravidade da situação. “Era ameaça atrás de ameaça. Aguentei até perceber que minha cabeça estava indo para o espaço, junto com a minha vida”, conta.

Após um ano, a herança que ficou para Caio é certa insegurança em novos relacionamentos. “Analiso muito antes de qualquer decisão”, diz.

Minientrevista

Raquel Barretto

Psicóloga

O que pode ser considerado uma relação abusiva?

É muito difícil uma pessoa tomar consciência de que está vivendo uma. Essa relação comporta vários ciclos. Inicialmente, acha-se que é um mar de rosas o que se vive. É uma fase em que as pessoas descrevem os abusadores como maravilhosos. Mas, aos poucos, o encanto se perde. Com o tempo, eles passam a se mostrar ciumentos, controladores. Depois partem para agressões psicológicas e emocionais que podem terminar em violência física. Também é comum que manipulem o parceiro ou a parceira, de modo que acreditem que ele ou ela são culpados por tudo aquilo.

Quais são as principais características do abusador e da vítima?

O agressor normalmente tem baixa autoestima e só se sente bem ao lado de alguém que ele possa diminuir. Não costuma sentir empatia ou remorso e encontra prazer no sofrimento alheio. A pessoa que vive o abuso, por outro lado, acaba sofrendo com a baixa autoestima, que resulta na dependência do outro para se sentir valorizada. Ela sente que não consegue viver sem o outro, que sua vida não fará sentido algum, apesar da situação negativa.

É possível que os abusadores já tenham sido vítimas?

Sim. Muitos dos que chegam aos consultórios relatam um histórico de submissão em relacionamentos anteriores. Mas esse fator não deve ser determinante na escolha da pessoa. A maioria das vítimas não costuma se tornar o oposto. Inclusive, é recomendado que os abusadores, assim como as vítimas, façam terapia, procurem um profissional apto para trabalhar essas questões para que, assim, não repitam o ciclo em futuros relacionamentos. 

 

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