Esotérico

Relíquias sagradas ainda atraem multidões pelo mundo

Fábio Tucci Farah, perito da arquidiocese de São Paulo, fala da força desses símbolos

Por Da Redação
Publicado em 25 de outubro de 2022 | 03:30
 
 
O professor Fábio Tucci Farah no batistério de São João, em Poitiers, na França Foto: Mariana Mansur/Divulgação

Na Idade Média, as sagradas relíquias tornaram-se tesouros cobiçados por monarcas, papas, peregrinos e ladrões e ajudaram a forjar o imaginário ocidental. O Santo Graal, a coroa de Cristo e o Santo Sudário estão entre as relíquias que até hoje provocam o fenômeno da peregrinação. 

Em todo o mundo existem especialistas que se debruçam sobre as relíquias para estudá-las e comprovar sua veracidade. Quem fala com propriedade sobre o assunto é Fábio Tucci Farah, professor, perito em relíquias da Diocese de São Paulo, pesquisador do tema e coautor do recém-lançado “Relíquias Sagradas: Dos Tempos Bíblicos à Era Digital”. 

“Nas últimas décadas, vários best-sellers e blockbusters apostaram no fascínio da humanidade pelas relíquias. O cálice da Última Ceia e a Arca da Aliança, por exemplo, estão no centro de duas aventuras de Indiana Jones. Na cultura pop, as relíquias são geralmente retratadas como objetos poderosos situados na fronteira entre o nosso mundo e o transcendente. Nessas tramas, as relíquias aparecem como objetos dotados de um poder intrínseco, capazes de derrubar exércitos e conceder a vida eterna”, comenta o professor. 

Ele conta que o sucesso de tais obras tem raízes no fascínio ancestral da humanidade por objetos mágicos. “Desde a Antiguidade, relíquias poderiam ser indevidamente usadas como amuletos. Na Idade Média, isso se tornou um problema endêmico. A Igreja, verdadeira detentora das relíquias cristãs, sempre se preocupou em advertir os fiéis contra as práticas supersticiosas”, explica. 

E emenda: “As relíquias não são objetos mágicos com um poder intrínseco. Jamais se pode perder de vista o verdadeiro autor dos milagres realizados por meio das relíquias, Deus. Nem a parte essencial que nos cabe nesse processo, a fé”. 

Desde os primórdios da Igreja, os fiéis veneram as relíquias dos mártires. “Na época das catacumbas, túmulos de santos tornaram-se altares para celebrações eucarísticas. O sacrifício do mártir ali sepultado unia-se ao sacrifício redentor de Cristo. Apesar de já estarem no paraíso, os santos participavam das celebrações em suas relíquias”, ensina Farah. 

Com a ascensão de Constantino, “o Império Romano deixou de perseguir os cristãos e santa Helena, a imperatriz-mãe, partiu para a Terra Santa”. “Em uma cisterna a leste do Gólgota, teria descoberto as relíquias mais importantes da paixão e morte de Cristo, como a Santa Cruz e os pregos usados na crucificação. Divididas e distribuídas pelo império, aquelas relíquias eram sinais tangíveis da presença de Deus entre os homens e tornaram-se alicerces visíveis na construção da civilização cristã”, sustenta o professor. 

Já na Idade Média, quando o corpo de são Tiago foi descoberto, “multidões enfrentaram os mais graves perigos para estarem na presença do apóstolo”. “O santuário construído sobre a sepultura jamais fechava as portas. E os fiéis alegravam-se dia e noite com a certeza de que um dos apóstolos mais próximos de Jesus estava entre eles”, revela o professor. 

Certo é que, “até os nossos dias, as relíquias de um santo evocam a sua presença em nosso meio. Diante de uma relíquia, é possível vislumbrar o destino final de nossa peregrinação por este mundo. Ela não termina em um sepulcro repleto de ossos, mas alcança o reino de Deus. Por essa razão, costumo dizer que as relíquias são janelas privilegiadas para o paraíso”, observa o professor. 

AGENDA: Fábio Tucci Farah irá ministrar o curso “Tesouros da Idade Média”, nos dias 3,10,17 e 24 de abril de 2023, no Museu de Arte Sacra de São Paulo. Informações: 

https://museuartesacra.org.br/tesouros-da-idade-media-2/ 

Paradeiro das relíquias 

Santo Graal - Catedral-Basílica da Assunção de Nossa Senhora Santa Maria de Valência, Espanha; 
Santa Síndone, Catedral de São João Batista, Turim, Itália; 
Santo Sudário, Catedral-Basílica de “El Salvador” de Oviedo, Espanha; 
Santo Cravo e Título da Cruz, Basílica Papal da Santa Cruz em Jerusalém, Roma, Itália; 
Santa Túnica, Basílica de São Dionísio de Argenteuil, França; 
Vera Cruz, Mosteiro de São Turíbio de Liébana, Espanha.   
 

Lançamento

“Relíquias Sagradas: Dos Tempos Bíblicos à Era Digital” 
Carlos Evaristo e Fábio Tucci Farah 
Paulus Editora 
328 págs. 
R$ 153 
Onde comprar: https://www.paulus.com.br/loja/ 

Saques emblemáticos 

Historicamente, qual foi o grande saque. “A quarta cruzada ajudou a reescrever a história das relíquias. E aprofundou ainda mais o cisma entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa. No fim do século XII, o papa Inocêncio III convocou os nobres do Ocidente para resgatar Jerusalém. Em uma aliança com os venezianos, os cruzados atacaram a cidade de Zara. Em abril de 1204, voltaram-se contra Constantinopla – o maior repositório de relíquias da Cristandade, um relicário a céu aberto. Igrejas, mosteiros e santuários foram saqueados pelos cavaleiros”, comenta Fábio Tucci Farah. 

Segundo o cronista Nicetas Coniates, algumas relíquias tiveram um trágico destino. “Outras centenas foram carregadas na bagagem dos cruzados. O caso mais emblemático é o da alegada mortalha de Cristo. Pouco após o saque de Constantinopla, um cavaleiro exibiu, em Besançon, essa valiosa relíquia, supostamente a mesma atualmente custodiada na catedral de Turim. Em 2004, quase 800 anos após o saque cruzado, o então papa João Paulo II fez um mea-culpa histórico diante de dom Christódoulos, arcebispo de Atenas e de toda a Grécia”, relata Farah. 

E emenda: “Em um gesto simbólico, o sumo pontífice devolveu relíquias de mártires ortodoxos roubadas pelos cruzados. Seguindo o exemplo do santo padre, já canonizado, o atual arcebispo de Santiago de Compostela, dom Julián Barrio Barrio, devolveu à arquidiocese de Braga boa parte das relíquias furtadas por dom Diego Gelmírez, no século XII”. (AED) 
 

Napoleão resgatou coroa de Cristo 

 A suposta coroa de espinhos de Jesus Cristo estava na Catedral de Notre-Dame e foi resgatada do incêndio, em 2019, pelo padre Jean-Marc Fournier, capelão do corpo de bombeiros de Paris. “O incêndio trouxe à tona um dos maiores tesouros da Idade Média”, entrega Fábio Tucci Farah. 

Segundo ele, “assim como a Santa Síndone, essa importante relíquia de Cristo estava em Constantinopla na época do saque cruzado, em 1204 e permaneceu na cidade sob a custódia do recém-criado Império Latino. Em 1237, o então herdeiro do trono, Balduíno II, foi à corte do primo Luís IX em busca de dinheiro para combater os nobres bizantinos no exílio. Após uma transação milionária, a coroa de espinhos foi entregue ao rei da França”. 

Para abrigá-la, “o monarca ordenou a construção de uma joia da arquitetura gótica, a Sainte-Chapelle. Confiada a um dos curadores do acervo de medalhas da Bibliothèque Nacionale, a coroa de espinhos sobreviveu à turba revolucionária e, em agosto de 1806, foi transferida para Notre-Dame, onde ganhou um relicário encomendado por Napoleão Bonaparte”, revela o professor. (AED) 

Hipótese foi publicada no Vatican News 

Curiosamente, “a relíquia resgatada pelo padre Jean-Marc, durante o incêndio, não passa de um entrelaçado de juncos desprovido de espinhos”. “Para desvendar esse enigma, é preciso desfazer um equívoco histórico. A real coroa de espinhos não foi modelada na forma de um aro, a exemplo da coroa triunfal romana. Segundo são Vicente Ferrer, ela apresentava originalmente a forma de píleo. Seria, portanto, composta por duas partes. O entrelaçado de juncos, em Notre-Dame, serviria de sustentação a ramos espinhosos na parte superior”, revela Fábio Tucci Farah. 

Alguns estudiosos da Santa Síndone compararam a coroa de espinhos a um gorro, um capacete, um chapéu. Como tais descrições não fazem sentido do ponto de vista simbólico, desenvolvi uma nova hipótese para seu real formato. A coroa de espinhos teria sido inspirada em um adorno usado pelo Sumo Sacerdote. Minha hipótese foi apresentada em primeira mão pelo Vatican News, o órgão oficial de imprensa da Santa Sé”. Confira a matéria em https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2020-03/coroa-de-espinhos-jesus-especialista-brasileiro-pesquisa.html 

 O Santo Sudário e a Santa Síndone 

Segundo o Evangelho de são João, “quando Pedro e o ‘discípulo que Jesus amava’– identificado pela tradição como João – chegaram ao sepulcro vazio, depararam-se com os tecidos mortuários de Jesus”. “Por terra, havia panos de linho. E enrolado em um lugar à parte, o sudário que havia coberto a cabeça de Jesus. Nessa passagem evangélica, é possível identificar duas importantes relíquias. Para compreendê-las, devemos voltar ao momento em que Jesus foi retirado da cruz a pedido de José de Arimateia. Um sudário teria sido usado para cobrir seu rosto no traslado da cruz ao sepulcro”, comenta Fábio Tucci Farah. 

De acordo com o professor, conforme as prescrições judaicas, o sangue vertido após a morte deveria permanecer no sepulcro com o cadáver: “Desde a Idade Média, a catedral de Oviedo alega a custódia desse sudário. Trata-se de uma peça retangular de linho de aproximadamente 86 cm por 53 cm, com manchas castanho-claro de diversas intensidades. Em relação aos panos de linho que os apóstolos viram no chão, identificamos a mortalha usada para sepultar Jesus”. 

A alegada mortalha de Jesus, explica Farah, está custodiada em Turim desde 1578 e tornou-se o objeto histórico mais estudado de todos os tempos. “Em países lusófonos, como o Brasil, a relíquia é conhecida como Santo Sudário, um erro com origem em uma gravura largamente reproduzida em Portugal, no século XVI. O termo apropriado seria Santa Síndone”. 

Há mais evidências. “Se a Santa Síndone e o Santo Sudário fizeram parte do mesmo ritual funerário, deveriam apresentar inúmeros pontos convergentes. O primeiro investigador a apontá-los foi o monsenhor Giulio Ricci na segunda edição da obra L’Uomo della Sindone è Gesù. Ricci mostrou a compatibilidade entre as manchas no Sudário e o rosto impresso na Síndone”. 

E finaliza: “Em um estudo têxtil comparativo, ambas as relíquias são semelhantes em vários quesitos, a saber, o material de fios de linho cru, o diâmetro, a torcedura em Z e o número de fibrilas. A similaridade mais espantosa, porém, surgiu da pesquisa do doutor Baima Bollone, que logrou uma análise hematológica do sangue do Sudário, um sangue do tipo AB com DNA de perfil genético compatível ao da Santa Síndone”.