Vício

Uso seguro, coffee shops e legalização

Países que trocaram a criminalização pelo uso controlado obtiveram bons resultados na luta contra as drogas

Dom, 18/06/17 - 03h00
Usuário de crack consumindo droga na rua Tom Jobim, em Contagem | Foto: Leo Fontes - 5.8.15

Salas de uso seguro de drogas (Canadá, Austrália, Suíça etc), plantio nacional de maconha (Canadá e futuramente Uruguai), autorização de produção caseira (Espanha) e os famosos coffee-shops (Holanda) são modelos de políticas públicas alternativas que alcançaram bons resultados. Essas ações conseguiram diminuir riscos gerados pelo consumo das drogas em alguns países.

Conseguir livrar o mundo das drogas é praticamente impossível, na avaliação da psicóloga clínica e especialista em dependência química Heliana Fonseca, sócia da Gênesis – Centro de Tratamento da Dependência Química. A razão, segundo ela, é que a droga “faz parte da existência do ser humano, desde que o homem é homem”. “É importante termos vários olhares sobre o tema e unir esforços para conseguir um resultado positivo”, diz.

Nessa linha, muitas sociedades estão reconhecendo que a erradicação é irreal e que sempre haverá algum nível de uso de drogas na população. De acordo com o Consórcio Internacional sobre Políticas de Drogas (IDPC, na sigla em inglês), na esfera de redução de danos há toda uma série de intervenções. Entre elas, a difusão de informações sobre como reduzir os riscos associados ao uso, a oferta de serviços para melhorar a segurança dos usuários (programas de troca de agulhas e seringas ou salas de uso seguro), tratamentos para dependência, atendimento médico, intervenções psicossociais ou grupos de ajuda mútua. Também procura-se identificar e modificar as leis, normas e políticas que dificultem as intervenções ou aumentem os danos.

Diferentemente do que as pessoas podem imaginar, depois de adotar a metodologia de redução de danos, Portugal, França, Espanha, Holanda e Uruguai não registraram aumento do consumo de drogas, diz o psicólogo Bruno Logan.

Conforme relatório australiano que avaliou os quatro anos de operação das “salas seguras” para uso de drogas ilícitas, e que atendem 200 usuários por dia, a medida contribuiu para a queda nos números de mortes, de atendimentos hospitalares e de infectados pelo HIV. Também baixaram acidentes e contaminações com agulhas e seringas deixadas em praias e outros lugares.

Portugal tem uma das experiências mais bem-sucedidas. Desde 2001, quem é pego consumindo ou portando até dez doses de qualquer droga para consumo próprio não é preso nem multado. A lei determina que essa contravenção passe a ter caráter social, e não criminal. O país também promove o acolhimento de dependentes químicos, oferecendo tratamento gratuito, emprego com salário pago pelo governo e incentivos fiscais para as empresas.

O Brasil já teve projeto semelhante. Na gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo, foi criado o programa De Braços Abertos (DBA), com o objetivo de oferecer medidas de recuperação menos invasivas, com oferta de emprego e moradia. Apesar das críticas frequentes, o programa conseguiu ter mais de 80% de aproveitamento. Dos 416 indivíduos atendidos em 2016, 88% haviam diminuído o uso do crack, 84% conseguiram emitir documento de identidade, 53% retomaram contato com a família e 73% ingressaram na frente de empregos oferecidos pelo programa DBA. Porém, depois que João Doria assumiu a prefeitura, o projeto foi extinto.

Com uma experiência de mais de 34 anos atuando nessa área, Fonseca diz que o mais importante é realizar uma intervenção bem planejada e organizada. “Pior do que não intervir é intervir de forma errada”, afirma. Para Bruno Logan, o grande problema da redução de danos no Brasil é a falta de investimento do poder público.


Usuário morto em clínica gerou comoção no país

O caso do carioca Carlos Eduardo Albuquerque Maranhão, 46, encontrado na Cracolândia por amigos de infância, que decidiram bancar seu tratamento, comoveu o país na semana passada. Poucos dias após ser internado, ele morreu em uma clínica de reabilitação em Petrópolis. Viciado em crack e heroína, o homem teve uma parada cardiorrespiratória, fato que reacendeu o debate sobre os efeitos que a abstinência pode causar no organismo.

A interrupção abrupta do uso da heroína pode ser letal para um dependente químico debilitado, podendo levar também a insuficiência respiratória ou desidratação. Já no caso do crack, não há relação comprovada de mortes devido à interrupção do consumo. As mortes durante o processo de desintoxicação não são comuns.

FOTO: Reprodução / Facebook
Carlos Eduardo Albuquerque, o Sarda, em vídeo divulgado em janeiro deste ano


Narcóticos Anônimos não aceitam a hipótese do uso moderado

Apesar de a redução de danos vir se consolidando como uma das políticas mais promissoras na guerra às drogas, esse modelo ainda não é consenso entre grupos ou órgãos públicos. Para alguns, os perigos dessa política passam pelo incentivo a programas que mantenham o vício, além da disseminação da ideia de que o consumo pode ser feito com segurança e de maneira responsável, além da inversão do conceito de ser contra as drogas.

Além disso, em artigo publicado na “Revista Baiana de Enfermagem”, os enfermeiros Jaime Alonso, Maria Itayra e Maria Terezinha Zeferino avaliam que a redução de danos ainda tropeça nas sérias deficiências do sistema político real. “Suas ações são obstruídas por leis criminais e penais que fortalecem o afastamento do indivíduo dos serviços de saúde”, diz a pesquisa.

O grupo de Narcóticos Anônimos (NA), por exemplo, também não trabalha com a hipótese de usar com moderação ou responsabilidade substâncias que tenham causado dependência. Um dos princípios do NA é que, para se recuperar, não se deve usar nenhum tipo de drogas, ou seja, o grupo não acredita no uso controlado e trabalha com a política de abstinência total. O consultor comercial e membros do NA Danilo, 40, lembra que chegou a tentar usar apenas as drogas “mais leves”, mas acabava sempre voltando às entorpecentes mais pesados.

“Somos adictos – palavra que vem do latim, que significa ‘escravo de’. Entendemos que somos escravos do nosso comportamento doente e que a droga é a febre da doença”, explica.

Ele diz que a redução de danos pode ser um ciclo em que a pessoa, mais cedo ou mais tarde, vai esbarrar novamente no uso compulsivo e obsessivo. “Durante um período você pode até conseguir reduzir, mas inevitavelmente vai voltar ao fundo do poço”, diz. O dependente químico em tratamento T. G. T. M., 38, concorda. “Como eu já tinha chegado até o crack, eu comecei a fazer a regressão e passei a fumar maconha, beber álcool, mas havia muito excesso de medicação, e isso não me permitia ter um enfrentamento crítico da vida. Além disso eu poderia voltar a ter acesso fácil a outras drogas. Pra mim não funcionou, mas não sou contra”, diz.

Para Danilo, o crescimento do programa de 12 passos adotado pelo NA é a prova de que funciona. “Há 10 anos Belo Horizonte tinha cerca de oito grupos, hoje só na Grande BH temos 70 grupos. O uso de drogas é só a ponta do iceberg”, diz.

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