Um dos primeiros registros já identificados sobre o “squirting”, como é chamada a ejaculação pela vulva, está no Kama Sutra, escrito entre os anos 200 e 400. No texto indiano sobre o comportamento sexual humano, fala-se em um tipo de “sêmen feminino” que é expelido continuamente pelo aparelho reprodutor. Há também outros raros registros históricos sobre o fenômeno, que por séculos foi ignorado por estudiosos. Hoje, ainda que exista mais conhecimento sobre o tema, a verdade é que tabus sobre o squirting continuam a gerar situações embaraçosas e desconfortáveis no sexo – seja por preconceito ou por excesso de expectativa.
“O fenômeno ainda é uma incógnita para a medicina, a maioria das pessoas com vagina não apresenta ejaculação antes, durante ou depois da relação. Aquelas que experimentam esse evento, a princípio, sentem constrangimento, mas depois que entendem do que se trata aprendem a controlar e tirar proveito disso”, informa a sexóloga, ginecologista e obstetra Adriana Sad. “Lembro de atender uma paciente que, aos 40 anos, começou a ter episódios de ejaculação durante a relação. Ela ficou preocupada, pensava que poderia ser sinal de alguma doença, pensava que tinha algo de errado com o corpo dela”, comenta.
A especialista prossegue listando como a falta de conhecimento pode repercutir em experiências de constrangimento, que podem ser até traumáticas para pessoas com vagina que ejaculam. “Principalmente quando o squirting acontece em uma relação com parceiros com quem não se tem muita intimidade ou com pessoas que não têm informações sobre o assunto, há o risco de o evento ser confundido com a urina. Quando isso acontece, a mulher pode ser hostilizada, e o parceiro dela pode demonstrar nojo, ir embora ou questioná-la, às vezes com raiva, se ela urinou nele”, cita. “E ela própria pode imaginar que urinou e pode ficar com vergonha ou até se sentindo culpada por isso”, finaliza.
A também ginecologista e obstetra Isabela Aguiar, que faz pós-graduação em sexualidade humana, referenda as observações de Adriana. “Na clínica, esse tema chega muito como curiosidade, sendo que muitas pessoas que já tiveram ejaculação pela vulva pensam que o líquido expelido seria xixi, o que não é verdade”, sinaliza.
Foi mais ou menos a situação pela qual passou a comunicadora Ana*, 33. “Na primeira vez que tive um squirting, achei que fosse urina. Eu e o parceiro com quem eu estava até cheiramos para ver o que era. Só depois é que a gente entendeu”, conta, dizendo que voltou a ter a ejaculação com outros homens. “É meio aleatório. Eu nunca sei quando vou ter”, confessa, dizendo não saber se a posição ou mesmo a fase em que está no ciclo menstrual podem contribuir. “Via de regra, eu estava relaxada”, explica, assegurando que nunca faz sexo pensando em ter aquela experiência. “Não é algo que eu busco em uma transa”, diz.
Fetichização
Além de toda a confusão e dos episódios de repulsa, que causam danos à autoestima e podem gerar distúrbios como dificuldades para se ter prazer erótico, a supervalorização do fenômeno também se impõe como problema.
“Percebo que, para alguns, o fato de não ter um squirting é um gerador de ansiedade, como se, por não ejacular, aquela pessoa tivesse uma deficiência”, observa Isabela. Ela lembra que a indústria pornográfica costuma retratar o acontecimento de forma grandiloquente, como se, ao ejacular, a pessoa perdesse completamente e por inteiro o controle do próprio corpo. “Isso fica no imaginário e gera expectativas. Contudo, precisamos lembrar que nos filmes há muito exagero, muita performance e interpretação. Na vida real, não é bem assim”, alerta.
A espetacularização e a fetichização do squirting também trazem prejuízos e geram mais embaraços. “Um dos efeitos mais evidentes é a ansiedade de desempenho, quando a pessoa está na relação pensando na performance e preocupada com o que ela acha que precisa sentir. Isso atrapalha a resposta sexual, pois tira o foco do momento presente, impedindo que a pessoa experiencie o prazer daquela troca”, assevera a especialista.
A pressão costuma ser ainda maior no caso de pessoas que já tiveram squirting. “Quando ela está em um relacionamento, pode ser cobrada a sempre ter ejaculação, como se a ausência dessa reação fosse indício de um orgasmo incompleto, o que é um mito, pois os dois eventos são distintos e independentes”, aponta Adriana.
Outro prejuízo inerente a tanta expectativa é a frustração. A auxiliar administrativa Bárbara*, 27, relata que só vivenciou o squirting uma vez. Mas a experiência foi muito diferente do que ela havia idealizado. “Eu tinha muita vontade de ter a ejaculação, que eu já tinha visto em filmes pornôs. Imaginei que seria muito prazeroso, tanto que eu iria quase desmaiar. Mas, quando rolou, não foi nada demais. Eu só vi que tinha saído aquele líquido quando meu parceiro me mostrou. Ele achou que eu tinha tido um orgasmo, mas eu não tive. Ele pensou que aquele havia sido o melhor sexo da minha vida e ficou muito orgulhoso por aquele feito, mas, na verdade, foi até frustrante”, lamenta.
Nesse sentido, Isabela detalha que o fenômeno biológico ocorre durante a excitação e depende de uma série de fatores, inclusive emocionais, mas não necessariamente vem acompanhado do orgasmo – que pode acontecer antes, durante ou depois da ejaculação. “Aliás, uma mulher pode ejacular estando em uma relação em que ela não vai ter o orgasmo”, diz. “Portanto, não é verdade que mulheres que têm squirting vão alcançar um superorgasmo e não é verdade que o prazer delas será superior ao de outras mulheres que não têm essa experiência”, conclui.
Adriana segue na mesma linha. “A maioria dos relatos de pessoas que tiveram episódios de ejaculação pela vulva fala de uma sensação de prazer, mas não tão intensa quanto um orgasmo – tanto que, geralmente, quem têm essa experiência recorrentemente prefere ter antes dele”, assinala.
Biologicamente falando…
“Hoje, a maioria das pesquisas indica que, fisiologicamente, estamos falando de uma contração involuntária das glândulas de Skene, paralelas à uretra e localizada mais ou menos na altura da fração inicial da vagina. Por isso, algumas pessoas vão ter a sensação de que vão urinar quando, na verdade, vão ter um squirting”, explica Isabela Aguiar.
“Esse fluido pode vir também das glândulas de Bartholin, localizadas no terço interior dos grandes lábios, ou mesmo do colo do útero, que também produz muita excreção durante a relação sexual”, complementa Adriana Sad, citando que a ciência ainda tenta compreender melhor o evento.
Talita Gois, estudante de psicanálise e especialista em sexualidade, lembra que tanto mistério tem sua razão de ser. Ela faz um resgate histórico e lembra que somente há 24 anos as vulvas passaram a ser estudadas para além do sistema reprodutor, possibilitando outras compreensões sobre prazer e sexualidade. “O corpo do clitóris só foi descoberto em 1998, através da urologista australiana Helen O'Connell. Diferentemente do corpo masculino, o clitóris é um órgão cuja única função é proporcionar prazer à mulher”, situa.
A especialista lembra que tanto atraso científico reverbera em desconhecimento. Ela cita uma pesquisa realizada em 2020, pela YouGov, nos Estados Unidos, que revelou que, quando colocados frente a um diagrama do órgão reprodutor de pessoas designadas femininas ao nascimento, 45% das mulheres cisgênero e 59% dos homens cis não conseguiam identificar a vagina. Outro estudo feito pela mesma empresa, desta vez na Inglaterra, ouviu apenas mulheres e concluiu que cerca de 50% das entrevistadas confundiam a uretra com o canal vaginal. Em outras palavras, elas acreditavam que o orifício que libera a urina é o mesmo por onde elas têm relações sexuais e por onde saem os bebês em partos normais.