Comportamento

Timidez: sentimento, que é diferente da introversão, dificulta o desenvolvimento

Para especialistas, vergonha excessiva pode ter raiz em traumas na infância e, em alguns casos, se não for tratada, pode evoluir para o transtorno de fobia social

Por Da Redação
Publicado em 12 de abril de 2021 | 03:00
 
 
Segundo uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), pelo menos metade dos brasileiros se considera tímida Foto: Divulgação

Por timidez, Julia*, hoje com 25 anos, se recusava a participar de qualquer tipo de dinâmica expositiva em sala de aula nos primeiros anos do curso de comunicação social. Essa ausência em debates e conferências custou à então estudante a reprovação em duas disciplinas. E, ainda assim, por mais que se percebesse prejudicada por essa vergonha excessiva, preferia arcar com o ônus de perder pontos a lidar com o sofrimento que o fato de se sentir exposta lhe causava. Algo que gerava nela até mesmo sintomas físicos. “Mesmo que soubesse do assunto, eu não conseguia me lembrar do que tinha que falar. Quando conseguia, era horrível, porque começava a gaguejar e fazer pausas longas, que me deixavam ainda mais nervosa. Minhas mãos chegavam a suar, eu sentia meu corpo tremer. Para mim, era muito difícil conviver com essas situações, era frustrante”, desabafa.

Não só no ambiente universitário a timidez era um entrave para Julia. Mesmo tarefas banais, como lidar com atendentes em lojas ou com operadores de caixas de supermercado, se mostravam sofríveis para ela. Outra dificuldade estava relacionada à capacidade de fazer novas amizades. “Eu sentia que as pessoas estavam me julgando o tempo inteiro, que estavam me observando, o que era péssimo”, recorda a comunicóloga, que não está sozinha: segundo uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), pelo menos metade dos brasileiros se considera tímida. Um índice que está em consonância com apontamentos de outros estudos internacionais – caso de um levantamento da faculdade de Windsor, no Canadá, que também indicou que 50% daquela população já lidou com problemas relacionados à vergonha excessiva.

Mas, mesmo que seja um problema tão comum e disseminado, a verdade é que ainda há muita confusão ao se falar sobre a timidez. É o que sugere o psicólogo Ivan Paulo da Silva, com atuação em saúde pública e saúde mental, que busca diferenciar esse sentimento de mal-estar, que é um gerador de angústia, da introversão, classificada por ele como um comportamento característico da personalidade de uma pessoa. “Assim como existem aqueles que são mais expansivos e comunicativos, existem também os que são mais introvertidos e discretos. E isso não significa que esses indivíduos sofrerão, necessariamente, com entraves para se comunicar”, examina.

Silva se identifica como alguém introvertido. “Em certas situações, como em locais onde não conheço intimamente as pessoas, costumo interagir menos. Mas não por ter dificuldade de comunicação. Só não sinto essa necessidade. Contudo, isso nunca me atrapalhou profissionalmente, nunca foi um problema na universidade, tampouco é um problema quando vou iniciar alguma relação”, detalha. O quadro de timidez, por outro lado, é um sentimento que implica grande dificuldade na lida com o outro, especialmente em situações em que é necessário se expor, e que acarreta sofrimento psicológico. “Nesse caso, é comum que exista algum trauma na infância que pode ter feito que a pessoa queira se fechar ao mundo”, sustenta o especialista.

A psicóloga clínica Telma Cunha faz análise parecida. Segundo ela, a vergonha generalizada e excessiva costuma estar relacionada à baixa autoestima e à insegurança. “Este é um problema mais comum em pessoas que se cobram muito e pode estar associado a um histórico que vem da infância, de uma criança que não foi empoderada, que foi muito cobrada, mas não se viu valorizada ao desenvolver suas habilidades e sua autonomia. Por ter sido sempre mais criticada que reconhecida, quando chega à fase adulta, essa pessoa continua temendo o olhar julgador do outro”, expõe, sublinhando que, com essa autocrítica muito rigorosa, o indivíduo passa a vivenciar situações em que a timidez gera bloqueio ao desenvolvimento saudável.

Ameaça. Telma Cunha explica que, quando a pessoa está sofrendo com uma crise de timidez, ela entra em um quadro de ansiedade que, normalmente, se desdobra em reações físicas. “É como se o sujeito estivesse em uma situação de perigo. Por isso, pode sentir tremores, ter suor excessivo, gaguejar… Os sintomas vão variar muito de pessoa para pessoa; o que é regra mesmo é a sensação de grande desconforto”, destaca.

Positivo. Em alguma medida, sentir-se tímido, no sentido de experimentar certa apreensão em situações expositivas, é algo normal e até saudável, sustenta a psicóloga. “Se a pessoa vai participar de um evento em que precisará falar publicamente, é bom que sinta um pouco de ansiedade – o que a gente chama, na psicologia, de “ansiedade positiva”. Esse sentimento faz com que o sujeito se obrigue a se preparar melhor para que consiga falar com certa leveza”, argumenta. 

Tratamento pode ser necessário

“Existem várias técnicas e tratamentos para vencer a timidez. Em geral, o foco dessas intervenções é fortalecer a autoestima, sendo uma opção exercícios como jogos de representações, que vão ajudar a pessoa a enfrentar essas situações, como se estivesse treinando para vivenciar aqueles episódios”, salienta a psicóloga Telma Cunha. Outra estratégia é propor, para si, questionamentos que coloquem em xeque a crença de que se está sempre sendo negativamente julgado. “Podemos nos perguntar: ‘por que acreditamos que as pessoas estão sempre nos olhando por esse viés crítico?’ e ‘por que me senti mal com essa interação?’”, aconselha.

Telma reforça que a busca por psicoterapia é importante para o tratamento adequado desses quadros. “Mas é fundamental que se entenda que o problema não é a introversão. A pessoa pode continuar sendo mais reservada, mas isso não deve impedi-la de alcançar resultados positivos mesmo em situações que antes lhe pareciam adversas”, conclui.

Foi justamente com apoio de um psicólogo que Julia, cuja história abre esta reportagem, aprendeu a lidar com a timidez – e a driblar esse sentimento. “Antes, eu pensava que precisaria saber tudo, e, por mais que me aprofundasse, nunca parecia o suficiente. Então, eu ficava muito ansiosa, pensando que não ia conseguir. Agora, foco o que sei, organizo minhas apresentações com antecedência e consigo me sair bem nas mais diversas situações, sendo muito reconhecida no meu atual emprego”, destaca ela, que vem acumulando promoções em pouco mais de um ano desde que foi contratada. “Hoje, me sinto capaz”, reforça.

Timidez pode evoluir para o quadro de fobia social

Segundo estimativa apresentada no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em 2017, a fobia social, definida como um distúrbio caracterizado pela vergonha generalizada e excessiva, atinge 13% da população brasileira. O índice é considerado alto, sendo quase o dobro em comparação à média mundial, que é de 7%.

No caso da fobia social, o sentimento causado pelo medo de ser avaliado negativamente ou criticado pelo outro impede a pessoa de agir, gerando prejuízos para as relações com a família, com os colegas de trabalho e ou com os amigos. O transtorno tem níveis leve, moderado e grave. Em episódios extremos, o distúrbio pode levar ao suicídio.

“Hoje sabe-se que pessoas tímidas e não tratadas, se têm geneticamente uma predisposição, vão evoluir para a fobia social. Tímidos que não terão essa evolução acabam melhorando com o tempo. A timidez é uma variável não patológica da fobia social, tem um tratamento e um prognóstico bem melhor. Fobia tem um prognóstico mais reservado, e o tratamento tem que ser feito com terapia cognitivo-comportamental e medicação”, afirmou a psiquiatra Daniela Zippin Knijnik, do Grupo de Fobia Social do Programa de Transtornos de Ansiedade do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), em entrevista a O TEMPO na ocasião da publicação de um estudo sobre o tema.