Ter fé é estabelecer sintonia entre o espírito humano e o divino

Só a crença não basta

Redação O Tempo

Por Da Redação
Publicado em 15 de março de 2016 | 03:00
 
 

Na sequência de um diálogo tão raro, versando valores espirituais hoje tão fora de cogitação, onde quer que dois ou três de nós nos reunamos, o homem virou-se para mim e disse:

– Você está enganado, creio que Deus existe, não posso negar. Ainda que seguisse a teoria da evolução da espécie, saberia que Darwin jamais negou sua crença no poder superior.

Até a ala da Igreja que admite tal teoria frisa que, no último elo para alcance da figura hominal, houve um salto, e esse salto veio do dedo do Criador.

Ao ouvir explicação tão bem calçada, um espírito ingênuo iria concluir que seu autor é uma pessoa de fé. Mas um conhecedor das lições de Huberto Rohden rejeitaria essa conclusão. Para esse pensador egresso dos jesuítas, filósofo de ótima cepa, esse homem crê, tem boa vontade, mas não quer dizer que tenha fé.

As duas posições são diferentes, e Huberto, com a autoridade de seguro poliglota, explica: a errônea identificação de “crer” com “ter fé” veio da tradução do Evangelho do grego para o latim. A palavra grega para fé é “pistis” e ter fé é “pistenein”. Em latim, para fé, a palavra é “fides”, mas não há como dizer ter fé, então puseram “credere” para “pistenein”, o que deu “crer” em português. O problema ocorreu nas outras quatro línguas neolatinas.

A palavra “pistis” (ou “fides”) significa originalmente “harmonia, sintonia, consonância”. Ter fé é estabelecer sintonia, harmonia entre o espírito humano e o espírito divino. Sem essa sintonia, pode haver crença, mas não há fé.

Para Rohden, aí está um dos problemas que vêm prejudicando a teologia, e, para explicar a diferença de significado entre uma coisa e outra, ele estabelece o seguinte paralelo: um receptor de rádio só recebe a onda eletrônica emitida pela estação emissora quando está sintonizado perfeitamente com a frequência dela. Se a emissora, por exemplo, emite uma onda de frequência 100, o meu receptor só reage a essa onda e a recebe quando está sintonizado com a frequência 100. Só nesse caso meu receptor tem fé, fidelidade, harmonia. Esse homem pode, em teoria, aceitar que Deus existe e, apesar disso, não ter fé. Ter fé tem a ver tanto com a consciência como também com a vivência, a mística e a ética.

Para o filósofo, a conhecida frase “quem crer será salvo, quem não crer será condenado” é absurda e blasfema no sentido em que ela é geralmente usada pelos teólogos. No entanto, “se lhe dermos o sentido verdadeiro, ‘quem tiver fé será salvo’, ela está certa, porque salvação não é outra coisa senão a harmonia da consciência e da vivência com Deus”.

Curto: a fé, a sintonia com Deus, não se restringe à mera crença, mas na prática habitual da honradez e da retidão; na devoção religiosa, na posse de sentimentos que sobrepujam a lógica, na aceitação dos mistérios, na obediência aos valores morais na conduta, no sentimento da presença e da atuação divinas, no conhecimento vindo do acúmulo de experiências das graças e das bênçãos recebidas.