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A obra do poeta Umberto Eco

Publicado em: Sex, 23/02/18 - 03h00

Há dois anos, em 19 de fevereiro, a Itália perdeu um dos seus maiores pensadores. Desde então, muito se falou e se escreveu a seu respeito, quase sempre lembrando os maiores sucessos, sobretudo romances que o consagraram, como, por exemplo, O Nome da Rosa, um dos poucos best-sellers italianos de repercussão mundial, e A Misteriosa Chama da Rainha Loana.

No entanto, poucos se referiram à outra faceta do mestre piemontês: a poesia filosófica e a poesia satírico-paródica, presente em volumes como Il Scondo Diario Minimo (O segundo Diário Mínimo) e o minúsculo Sator Arepo Eccetera, publicado em 2006, por uma pequena editora.

No Segundo Diário Mínimo, o jovem Eco (1958) inventa dois pequenos “compêndios” intitulados “Filosofi in Libertà” e “Scrittori in Libertà”, nos quais recorre aos versos para divertir-se eruditamente com a história da filosofia, dos pré-socráticos a Heidegger, e com o pensamento de alguns grandes escritores como Proust, Kafka e Joyce, estabelecendo um curioso diálogo entre os filósofos elencados em ordem cronológica. Há ainda improváveis “conversas” entre determinados escritores “filosóficos”, como ocorre no estranhíssimo “Diálogo entre Dante e Saussure”, no qual o “sommo poeta” lamenta o “aspérrimo” caminho percorrido pelo linguista para defender a “sincronia estrutural”.

Trata-se de exercícios de poesia despretensiosos, mas densos de erudição e dotados de fino humor, em que o grande pensador, ainda muito jovem e no início da sua brilhante carreira, dá asas à imaginação e concebe curiosas “conversas” entre os maiores pensadores da humanidade.

A título de exemplo, podemos observar como em “Filosofi in libertà” Marx reage inconformado a uma pergunta feita sobre o pensamento de Kant e, é possível perceber, claramente, que o autor tencionou obter um efeito cômico a partir de dados “sérios”.

No contexto do final dos anos 50, em plena Guerra Fria, deve ter parecido provocador imaginar Marx reagindo inconformado a uma observação sobre se a noção de razão em Kant depende de ele ter ou não tomado o café da manhã!

Mas o “Secondo Diario Mínimo” tem outros exemplos fantásticos da verve poética de Umberto Eco que se diverte alterando poemas de Montale, como, por exemplo, quando reescreve a poesia montaliana “Addio fischi nel buio” (“Adeus, assobios na escuridão”). Ao refazer os versos de Montale, ele prefere imaginá-los sem as vogais, em etapas nas quais paulatinamente as vogais são retiradas até descaracterizar completamente o original. Mais uma vez se trata de uma brincadeira, talvez destinada a preencher noites de insônia.

Em Sator arepo eccetera, além da invenção de incríveis anagramas e acrósticos (naturalmente, sempre recheados de referências eruditas), impressionam as divertidas paródias de alguns versos. O mais incrível é que esta aparente atualização “subvertida” dos versos de um dos maiores poetas da humanidade mantém a “música” de Dante, pois tanto a rima como a métrica são respeitadas. O hendecassílabo do poeta florentino surge adaptado aos nossos tempos vulgares, perdendo, assim, dramaticidade e provocando antes risadas que lágrimas.

Umberto Eco foi também poeta, mas do seu jeito característico, misturando erudição com finíssimo humor, além de certas flechadas disparadas contra as convenções e contra as ideologias e verdades pretensiosamente indissolúveis. O seu legado, já bastante rico e destinado à eternidade, como todas as obras dos verdadeiros artistas, permite também que seja incluído no rol extenso dos poetas universais, ao menos no que concerne aos poetas satíricos ou com características paródicas.

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