Cadu Done

Cadu Doné

Black Mirror do bem (ou não)

Publicado em: Qua, 06/10/21 - 14h35

Black Mirror do bem (ou não)

Forçar a barra para enlaçar o tópico central com o esporte vai ser difícil. Uma hora o futebol aparece. Estava estafado do termo distopia. Virou clichê dentro de certos círculos. Fora deles, se alguém pescasse a desgastada palavra, sei lá, num bar do Vila da Serra, já seria gênio, esquisito, um filósofo no ninho; mistura de sentimentos: estranheza a referências pretensamente intelectualizadas dentro de uma elite digna de “O discreto charme da burguesia”; a inteligência segura de quem tem um olho na terra de cegos. Num tempo mais longínquo, e a genialidade das primeiras temporadas de “Black Mirror” serviram como gatilhos para isso, “distopia” integrou arengas de gente antenada, culta. Me recordo de reflexões brilhantes em torno deste conceito feitas por algumas das melhores jovens mentes que temos – Daniel Galera, João Paulo Cuenca.  

Fantasia mórbida

Nunca tive redes sociais. Nem Orkut. Nem MSN. Para ser justo, usava o ICQ. As tramas dos “decisivos” dramas do “High School” – Family Guy: “One Tree Hill, these problems matter” –, a volúpia adolescente para “cantar” as colegas de colégio prendiam. Mas até ali a percepção do desperdício de tempo incomodou. Sei que perco – muito – dinheiro, enquanto “figura pública” – sim, comentar futebol é, para mim, subprofissão, mas parece que fiquei famoso por isso. Aderi ao WhatsApp apenas recentemente. A fórceps. Na Copa de 2018, em Moscou, com chip de Putin. Mantive meus raros contatos nesse aplicativo do demônio somente no número russo. Não teve jeito.

Ojeriza

Contextualizei meu aborrecido relato pessoal porque ele se confunde com uma fantasia que me arrebata desde sempre: o que aconteceu na segunda e desesperou o mundo, no fundo da minha mente – na verdade, nem seria necessário mergulhar nos recônditos do meu âmago, tedioso como minha coluna –, é algo que queria ver de forma definitiva. No mínimo longeva. Citando de novo meu amigo Cuenca: um detox coletivo. Em tese, e talvez na prática, vibrei na tarde de segunda. Mas a doença passou do ponto.

Sem volta

Às vezes a moléstia se espalha de forma tão generalizada e irreversível pelo nosso corpo, pelo nosso organismo, que os remédios são piores do que os sintomas. Eutanásia. “The drugs don’t work”, Richard Ashcroft. “Descobri que estava morto”, amado escritor. Woody Allen retorna a Paris dos anos 20. Encontrou Hemingway, Picasso, Dali, Scott Fitzgerald. Idealizo uma Alemanha em que pudesse ver Goethe, Wagner, Schopenhauer, Nietzsche e Mann. No fundo, a década de 90 foi o auge da humanidade.

Jordan e Romário

Boa dose de tecnologia sem mudar nossa fisiologia a ponto de lembrarmos de “A genealogia da moral”, de Nietzsche; das geniais aulas de Rogério Lopes. Seinfeld, futebol sem selfies, tropeiro não gentrificado, Jordan, Romário, Twin Peaks, Oasis x Blur, Nirvana, Pavement; Teenage Fanclub, R.E.M., My Bloody Valentine, Primal Scream lançando clássicos – todos estes em 91 (que teve também Nevermind). Jornalismo cultural vivo. NME, Mojo, Melody Maker, Ilustrada no auge.

Telefone

Secretária eletrônica, pagers, celulares na medida certa – achamos a pessoa; não tiramos do bolso um trambolho toda hora.

Discada

A beleza da ansiedade controlada pelo encontro de textos impossíveis aos domingos, com a Internet discada. CardosOnline.  

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