Cadu Doné

Protestos interessantes

Não se trata de romantizar o que vem do futebol inglês. Invasão, ainda que não acompanhada de um ataque físico propriamente dito, quase sempre será um erro.

Por Cadu Doné
Publicado em 05 de maio de 2021 | 03:00
 
 

Protestos interessantes

Não se trata de romantizar o que vem do futebol inglês. Invasão, ainda que não acompanhada de um ataque físico propriamente dito, quase sempre será um erro. Inegável, todavia, que o protesto realizado pela torcida do United no último domingo esparge simbolismo, nos traz incontáveis camadas de significados – e, nesta esteira, vieses intrincados, positivos. Espalha-se em parte da imprensa leituras simplórias da situação; atrelá-la apenas a um resquício de insatisfação quanto à malfadada Supercopa é sucumbir à narrativa da moda; sugerir que os “Diabos Vermelhos” teriam fãs adormecidos caso os resultados em temporadas recentes tivessem agradado revela desconhecimento da cultura local – desmistificar esta parte mostra-se fácil: desde quando a família Glazer assumiu o controle do clube, entre 2003 e 2005, a rejeição materializou-se implacável.  

Futebol raiz

Esqueçam o surrado e populista uso desta expressão; na terra da Rainha, mais do que no Brasil, cultiva-se relações com as origens de cada agremiação. Estive em Manchester duas vezes; a segunda, por um período considerável; acompanhar um jogo em Old Trafford, sobretudo na Stretford End – arquibancada atrás de um dos gols que reúne torcedores em geral locais, mais fanáticos; perambular pelos pubs antes e depois dos cotejos, surpreende quem espera comportamentos insípidos típicos de uma modalidade que sucumbiu ao mercantilismo exacerbado. Nos cânticos dos “mancunians”, na aura dos ambientes nos deparamos com o exalar de um orgulho regional.

Maior rival

Qualquer sujeito minimamente iniciado nas questões do ludopédio britânico sabe: o maior rival dos súditos de Alex Ferguson não é o City; quem desperta a ira do lado vermelho de Manchester é o Liverpool. E as canções entoadas pelos nativos deixam isso claro; mas há um detalhe que passa despercebido: mais do que referências ao clube de Merseyside, vocifera-se com ardor contra a cidade vizinha. Nestes instantes, toca-se o intangível; um forte laço com a cultura do lugar onde o time foi criado.

Cultura

Em toda uma série de condutas da torcida do United somos lembrados deste elo da instituição com sua casa; “Manchester é meu paraíso”, lemos numa faixa que se faz presente no Teatro dos Sonhos; outras decretam que ali atua o verdadeiro representante “mancunian”; entre os hinos “não oficiais” dos adeptos em exame destacam-se as canções do Stone Roses – genial banda que, em diversos sentidos, encarna o espírito da cidade (“This is the one” ecoa sempre que os “Red Devils” entram em campo).   

Rejeição

A ojeriza aos donos americanos edificou-se, desde o nascedouro da relação, pela intuição de que a amada equipe, a instituição deles, das pessoas de Manchester, ao ser vendida para magnatas despidos de qualquer vínculo com as origens, a história daquele povo, perdeu sentido; identidade. Não importa o dinheiro. Tudo bem que o United, ao contrário de City e Chelsea, não apoiou-se nos novos proprietários para subir de patamar; o clube já era rico. Ainda assim...

Brasil

Até torcedores ferrenhos, no Brasil, costumam bradar reverência por qualquer possível investidor que tornaria o time poderoso.

Moral

E não importa se a origem do dinheiro é suspeita: vide, por exemplo, a cafona idolatria da Fiel por Kia Joorabchian em 2005.