Cida Falabella

Brasil, terra indígena

Acampamento Luta Pela Vida dá aula de inventividade política

Por Cida Falabella
Publicado em 26 de agosto de 2021 | 03:00
 
 

Nesta semana, representantes de povos indígenas e apoiadores estão acampados em Brasília, por ocasião do julgamento do Marco Temporal pelo Supremo Tribunal Federal. Na terça-feira (24), me emocionei com as imagens das manifestações que cortavam as ruas ao cair da tarde com cantos e danças e que iluminaram a área da frente do prédio do STF com milhares de pontos de luz e de fogo que formavam as palavras: Brasil Terra Indígena. Uma cena linda e histórica.

A tese do Marco Temporal, defendida por ruralistas, argumenta que povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam em 1988, quando a Constituição Federal entrou em vigor. Terras indígenas já tiveram seus processos de demarcação devolvidos com base nessa tese, materializada em um parecer da Advocacia Geral da União, emitido ainda no governo Temer. No hiato entre o envio desse texto e sua publicação, portanto, o país pode ver a confirmação de mais uma violência extrema contra os povos originários, mais um capítulo de uma extensa história de perseguição, tortura, genocídio e usurpação de terras. Caso o Marco Temporal seja rejeitado, celebraremos um direito duramente conquistado que nunca deveria ter sido questionado. Triste Brasil.

O acampamento Luta Pela Vida vai de encontro a esse país que sangra. São 6.000 pessoas, de 173 povos, em vigília em frente ao STF, cantando e pedindo que a Corte defenda os direitos garantidos na Constituição. Trata-se da maior mobilização dos povos indígenas desde a Constituinte de 1988. Um dia, nos disse Célia Xakriabá: “o que explica estarmos vivos hoje, os povos indígenas, não é exatamente a quantidade, mas a força da espiritualidade e do cantar. Nós, mulheres indígenas, sustentamos esse cantar. E nós, mulheres indígenas, juventude indígena, sustentamos esse canto para dar continuidade à força do cantar”.

A dicotomia entre natureza e produção, presente e futuro, vida e morte, indivíduo e comunidade é fruto da nossa cosmovisão ocidental eurocêntrica, que se baseia na noção de que o tempo é linear. Para os povos e comunidades indígenas e quilombolas, o tempo é circular – ou espiralar – e, na roda infinita da vida, o que foi ainda é, e o que é, será. Ou seja, passado, presente e futuro não se dividem, e o território ancestral é sagrado, inviolável, é o chão dos mortos, da comunidade e dos descendentes. É a essa imensidão que se referem os cantos entoados nas manifestações indígenas que ocupam Brasília Ainda nas palavras de Célia: “não lutamos com as mesmas armas do inimigo, mas também não estamos desarmados”.

Ao enfrentarem decisões institucionais que podem exterminar seus territórios com cantos e pinturas, com torés e rezas, e com articulação política e jurídica, convocando apoiadores e forças internacionais a se juntarem à causa indígena, os povos originários respondem ao extermínio com uma aula de inventividade política.

Nós, todas e todos nós, precisamos dessa força, precisamos nos fortalecer em comunidade, em conexão com os que vieram antes de nós, com quem ainda chegará, irmanadas à espiritualidade ancestral. Precisamos para enfrentar a política da morte, a maior ameaça à vida e a dignidade da população brasileira desde a redemocratização, e as tentativas de ruptura não só da democracia, mas do frágil pacto civilizatório que as lutas da contracolonização vêm, ao longo de séculos, tentando construir.

O Brasil é terra indígena, escreveram em letras grandes e brilhantes. Acreditar nessas palavras e defender essa ideia é a nossa força de salvação.