Daniel Barbosa

Breviário de introspecções musicais IV

Publicado em: Sex, 02/12/16 - 02h00

Havia sobre a cristaleira da sala na casa de minha avó Raimunda, na zona rural de Sete Lagoas, onde eu costumava passar as férias escolares, um rádio paleolítico, do qual me chegava aos ouvidos, invariavelmente, sempre às 6h, quando eu era acordado para o desjejum e para ajudar na roça, o viscoso refrão “Por que você não passa lá? /Por que você não passa? /Você sabe onde me encontra /Você tem meu endereço /Mas você não passa lá”, entoado pelo Trio Parada Dura. Era o início de um programa dedicado às coisas do campo e à música caipira. Aquilo, obviamente, ficou guardado em algum escaninho da memória.

De uns dez anos pra cá, redescobri o gosto por esse tipo de música. Costumo, atualmente, ouvir, sempre que possível, o programa “A Hora do Fazendeiro”, da Inconfidência AM, que, aliás, de resto dedica espaço generoso para artistas e duplas caipiras. É um som que evoca lembranças ternas, de um ambiente que se equilibra entre o bucólico e o rústico, assim como devia ser Bento Rodrigues, que não conheci nem vou conhecer nunca.

Quando falo do meu apreço pela música caipira, me refiro àquela mais antiga, de duplas como Tonico e Tinoco, Alvarenga e Ranchinho ou Cascatinha e Inhana, mais pé no chão, mais moda de viola, sem a pirotecnia que é marca registrada do sertanejo moderno. Na verdade, também gosto da geração subsequente, de artistas como, por exemplo, Milionário e José Rico, que deslocaram ligeiramente o eixo temático das canções do campo para a estrada, falando mais ao caminhoneiro do que ao vaqueiro. Havia ali, em termos musicais, especialmente em Milionário e José Rico, um curioso flerte com a guarânia e, em geral, com os ritmos do Centro-Oeste e do Sul do país, já sem a crueza de outrora, pelo contrário, com instrumentação densa, não raro orquestral.

Me instiga à reflexão o conflito, que pelo menos para mim existe, entre esse sentimento de ingenuidade e pureza campesina que a música caipira me suscita e a percepção de que, em termos de temática, as letras desse cancioneiro são grotescamente machistas, cultivam a penitência religiosa como um valor inquestionável, enxergam na mula, no boi e no cavalo quase que símbolos de adoração, dão mais valor ao trabalho do que ao estudo, mais valor à honra e à austeridade moral do que à diversidade e à liberdade, e são, no geral, o que se poderia chamar de “reacionárias” no último grau.

Pode-se dizer que essa ambivalência entre o sentir uma coisa e o pensar outra, provocada por determinada música, também se aplica às marchinhas carnavalescas. Não é segredo para ninguém que boa parte dessa produção está impregnada de preconceito racial e de gênero. Tenho plena ciência de que esse teor, mais do que condenável, é digno de ser combatido, mas não deixo de me esbaldar no Carnaval ao sabor de “o teu cabelo não nega, mulata” ou “olha a cabeleira do Zezé”. São, afinal de contas, músicas que, a seu modo, contam um pouco da história do país, sem deixar de expor suas mazelas, seus estigmas e seus recalques.

Texto originalmente publicado em 20.11.2015.

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