Daniel Barbosa

Digressões do jogador em xeque

Publicado em: Sex, 24/11/17 - 02h00

Confiança é a palavra. É preciso ter a certeza do acerto, saber e antever o impacto tangencial da bola branca na bola vermelha, o deslocar-se desta num ângulo de mais ou menos 75° em relação ao traçado daquela, a linha reta que ela vai caprichosamente cumprir rumo à caçapa e sua triunfal queda por entre as quinas que ladeiam o destino pretendido. Claro que a geometria também é importante. É matéria em que nunca obtive bons resultados nos exames da escola. É estranho, eu não ia bem nas provas, mas entendia perfeitamente os ângulos, as distâncias, as medidas, os vetores e coordenadas, as superfícies e volumes, os planos, as linhas, as curvas, os catetos e a hipotenusa. Ou supunha entender. O fato é que, na prática, a geometria nunca me faltou. Essa aptidão se revelou logo de início, nas partidas que eu, moleque de uns 15 anos, já contabilizava nos botecos da zona rural de General Osório, a cidade do interior mineiro em que nasci e passei minha adolescência.

Tinha muito trabalho sempre, com o roçado, com a criação, os porcos, as galinhas, as sete vacas, dois bois e dois bezerros magrelos. Tinha muito trabalho com os reparos que constantemente pediam o chiqueiro, o paiol, o curral, a moenda e a própria casa em que a gente morava, que já não era nova. Mas perto do final da tarde, no espaço de tempo que iria até a hora do jantar, ali por volta das oito da noite, eu batia pernas pelo distrito, encontrava os amigos na rua, e invariavelmente íamos parar em volta de uma sinuquinha capenga, o pano verde meio rasgado, sujo, espremida entre os tamboretes dos botecos apertados que faziam a alegria dos desocupados. Tanto para a lida na roça quanto para folgança não tinha idade. Ali, nasceu homem, tem força no braço para carregar peso e força na perna para andar longe, então é adulto o suficiente para capinar das seis da manhã até o meio-dia, para tanger o gado, para beber cachaça e para ir à zona. Então, com 15 anos eu trabalhava muito, saía no fim da tarde, ia para o boteco beber e ganhar uns trocados jogando sinuca com os amigos. Sempre apostávamos algum dinheiro, e eu nunca voltava para casa com menos do que tinha saído.

Ter aprendido a jogar em mesas e ambientes tão precários foi, penso, importante para que eu adquirisse recursos e malícia que, agora, por exemplo, nessa situação completamente outra, me são providenciais.

É gritante a distância entre os cenários da minha juventude e este que agora me cerca, mas, estranhamente, quase não sinto diferença. Aquela mesa de pano imundo e rasgado e esta, cheirando a nova, impecavelmente plana, aquelas biroscas decadentes e o salão nobre deste hotel cinco estrelas, aqueles bebuns fedidos e esta polida plateia, é tudo, quando estou concentrado, jogando, um borrão só.

É conveniente que seja assim, o ambiente que cerca o bom jogador tem que parecer uma paisagem na moldura, uma pintura dessas que se vendem em praça pública, meramente decorativa ou às vezes nem isso, que se pode ignorar sem prejuízo do senso estético. Quem fica tenso com o fato de ser observado enquanto está em ação ou quem se ressente da pompa que certos torneios ostentam, bem como quem se incomoda com a falta de estrutura, higiene, ventilação, espaço, enfim, com a falta de condições adequadas tão comuns na informalidade daqueles botecos que eu frequentava, se desestabiliza e não consegue se concentrar. E sem concentração a confiança escapa.

Texto originalmente publicado em 22.2.2012

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