Daniel Barbosa

O edifício III

Publicado em: Sex, 09/06/17 - 03h00

O edifício fica situado em uma serra, lá no alto, quase no topo. Compacto, ocupa todo o quarteirão, grande retângulo de concreto encravado no flanco oriental do morro de terra vermelha. Apesar da altitude, nem todos os apartamentos oferecem a seus habitantes uma vista do horizonte recortado por montanhas.

É que a Leste, de onde se avistaria o sol nascente, o edifício faz frente com outro prédio, cujas paredes azulejadas bloqueiam a visão, exibindo aos habitantes dos apartamentos com janelas voltadas àquele lado o espetáculo corriqueiro do dia a dia de seus vizinhos de frente.

Os que habitam apartamentos voltados para o poente, no entanto, se dotados da sensibilidade necessária para apreciar o fenômeno, são premiados com a descida do sol nas tardes limpas, ou com nuvens coloridas de vermelho e cinza, quando o dia termina nublado.

Quem tem seu apartamento voltado para o Norte contempla de casa o vasto panorama da cidade espalhada pelo vale, com seu labirinto de ruas, seus prédios altos, casas baixas, as buzinas dos carros, as poucas árvores ao sabor dos ventos, as risadas das crianças, as vozes dos casais que brigam. Ao fundo, já esmaecida, fica a silhueta do grande estádio de futebol, de onde emanam as exortações dos torcedores e os foguetes nos dias de jogo.

Mais longe ainda, avistam-se galpões abandonados, fábricas vazias, lembretes do declínio econômico da cidade. Emoldurando tudo, sempre a grande cadeia de montanhas vermelhas, já algo desgastadas pela eterna e lucrativa exploração mineral.

Por fim, chegamos à face Sul do edifício. Triste face. À noite, encara emocionada as muitas luzinhas coloridas que enfeitam, como bolinhas em árvore de Natal, o solo da montanha vizinha. De dia, a montanha acordada se torna uma grande massa alaranjada, terra vermelha e tijolos vermelhos sem reboco, lembrando ao morador que, embora sua vida tenha sido próspera o suficiente para comprar ou alugar aquele apartamento de dois quartos, o bairro só não é mais pobre do que a favela vizinha.

A calçada e a rua se parecem em todas as quatro quadras que o cercam. O passeio é estreito, de concreto com brita, levantado em muitos pontos pelas raízes das árvores, e quase sempre sujo com o resto do lixo, que só é recolhido três vezes por semana. A rua é úmida, de asfalto coalhado de rachaduras.

Nas faces oriental e ocidental as quadras são bem planas, e nelas situam-se as portarias e as entradas das garagens do edifício. Ali a criançada consegue, aos domingos, improvisar gols com chinelos e jogar um pelada.

A quadra Sul não é cortada propriamente por uma rua, mas por viela malcalçada, e que os habitantes do edifício compreendem não pertencer a eles, mas a seus vizinhos menos afortunados do aglomerado. A quadra norte é verdadeira pirambeira, transformada em enxurrada nos muitos dias chuvosos e em cachoeira nos de tempestade, e, mesmo em dias secos, mulher nenhuma se atreve a descê-la de salto alto.

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