FABRÍCIO CARPINEJAR

A geladeira do mineiro casado

'A geladeira é a intimidade esclarecida. Uma versão gelada da despensa. Tudo organizado por tamanho. Lembra um Lego de adultos'

Por Da Redação
Publicado em 19 de fevereiro de 2022 | 03:00
 
 
Hélvio

A geladeira do mineiro casado, por dentro, é colorida, com vários potes empilhados. Quanto mais potes, mais tempo de casamento. 

Quando é alcançada a cota de 30 potes simultâneos, o casamento alcançou as bodas de ouro. 

Nem precisa consultar a data no cartório. 

A geladeira é a intimidade esclarecida. Uma versão gelada da despensa. Tudo organizado por tamanho. Lembra um Lego de adultos. Ou malas ajeitadas no bagageiro. Não há uma fresta para visualizar o fundo. As vasilhas se encaixam umas sobre as outras, compactas. Existe uma ciência para a ocupação integral do espaço. Não encontrará modos de atalhar. Tem que remover a ala da frente para apanhar os potes de picles, de pepinos, de azeitonas atrás. 

É um tira e põe interminável. Às vezes, o casal quer comer fora só para não bagunçar aquela ordem e ficar segurando a montanha de plástico em malabarismo nos poucos braços. 

Uma das discussões mais tensas do relacionamento surge quando alguém pede o favor de buscar um produto ali. 

Certamente vai cair algo quando você abrir a porta com mais força. 

Reze para que a queda da Tupperware® seja de pé, senão perderá toda a sua preguiça varrendo o chão. 

Aquilo que se sofria com a leiteira fervendo, transbordando e sujando o fogão na infância, arca-se com o tombo dos potes no piso da cozinha. 

Torça ainda para que não seja o do caldo de feijão – que exigirá rodo, pano e produtos químicos. Entrará involuntariamente na faxina. 

O casal não joga nada fora. Há uma mania de preservar os alimentos às últimas consequências. Se houvesse data de vencimento depois de cozinhar, nem metade das porções sobreviveria. 

No almoço, o costume é aparecerem dois ou três pratos remanescentes da refeição passada. Ganham uma repescagem. São requentados e colaboram para fazer número e transformar qualquer mesa num banquete com opções conflitantes. 

Mineiro sempre termina em rodízio. Natural o leitão à pururuca de ontem dividir as vasilhas com uma vaca atolada de hoje. Apanha-se o que tem pela frente, sem se importar se a mistura apresenta recomendação médica, tradição folclórica, sentido histórico ou transgride as normas da alta gastronomia. 

Tanto que decorre desse ato prosaico a infinita capacidade de formação de chefs no Estado. Desde pequenos, são tropeiros do garfo e faca, habituados a agregar texturas e a combinações improváveis pelo acúmulo familiar de menus. Experimentam sabores antagônicos pelo constante reaproveitamento dos alimentos. 

Assim testemunhamos nos restaurantes guioza de quiabo ou sushi de barriga de porco. Nada é tão estranho que não possa ser testado. Fundem-se culturas de países longínquos com o tempero de Minas Gerais, abrem-se embaixadas nas panelas. 

O apocalipse do matrimônio local é na hora em que a geladeira passa a cheirar mal. O casal é obrigado a solicitar um dia de folga do serviço levantando tampas, testando o olfato, até achar o odor intruso, até desovar o cadáver da complacência, até desvendar quem escapou do mexidão.