FABRÍCIO CARPINEJAR

Achados e perdidos da amizade

O mineiro ama boteco para ficar na calçada; o que ele quer é sentar na calçada

Por Da Redação
Publicado em 07 de julho de 2019 | 03:00
 
 
Acir Galvão

O mineiro ama boteco para ficar na calçada. 

O que ele quer é sentar na calçada. 

O que ele deseja é ser visto bebendo. 

O que ele aprecia é localizar conhecidos na rua ainda estando no boteco. 

É degustar o lazer da bebida, do tira-gosto, e ver a cidade passar por ele, a cidade desfilar em seus olhos. 

Boteco sem cadeiras e mesas para fora é desalmado.

A boemia aqui é espalhada. A ponto de não saber onde começa um bar e termina o outro. Todos estão juntos e embaralhados no meio-fio.

O negócio pode ter um espaço pequeno, apertado, ser uma garagem, uma simples porta, desde que ofereça os metros quadrados secretos da avenida. 

A vida do boteco mais acontece na frente do seu endereço do que no seu interior. 

Boteco em Belo Horizonte é varanda. Como sinônimo da liberdade. 
O balcão é feito da lua e das estrelas. A iluminação vem dos postes de luz. A esperança nasce das esquinas. 

Boteco em Belo Horizonte é coreto. É praça pública. É passeio sentado. É o momento da família de amigos, dos parentes das afinidades, dos laços além do sangue. 

Boteco em Belo Horizonte é aeroporto de cerveja, com garrafas decolando e aterrissando no isopor. 

Você sai de casa para jamais se confinar a um esconderijo.

Se alguém oferece mesa lá dentro, você diz que vai aguardar uma mesa lá fora. É humilhante permanecer preso no local enquanto os demais estão curtindo a brisa da noite. É fazer parte do segundo escalão da madrugada. Mesmo que para isso seja necessário resistir de pé a noite inteira, servindo-se com o apoio das lixeiras. 

Os garçons viram guardas de trânsito, cuidando para que os clientes estacionem os seus sonhos e flertes em uma mesinha ao ar livre. 

Mineiro tem orgulho da folia, não pretende se ver isolado em um canto, invisível, dentro do estabelecimento.

Não tem sentido beber escondido. Não se bebe para esquecer, mas para lembrar, para acompanhar o tumulto e comentar a biografia de quem está ali por perto. Bebe-se para ver o mundo girar. 

Boteco em Belo Horizonte não é solidão, e sim solidariedade, passarela, noticiário. 

A alegria está ligada à arruaça, a falar alto, a gesticular muito, a parar um papo de repente para cumprimentar alguém se aproximando. 

Começa-se com uma roda íntima de discussão, depois já está em uma nova roda com gente que nunca viu, trovando com uma cumplicidade imediata. 

O acaso brilha, desmonta panelas, realiza migrações imprevisíveis. 

As calçadas do boteco representam uma forma de o insconsciente preservar o passado ancestral das fazendas: a vontade de sempre enxergar o longe, o futuro, o movimento. 

Os botequeiros são latifundiários do amanhecer. 

Não estranhe a paixão mineira pela multidão. O boteco é o Facebook preferido dele, um Facebook ao vivo, em que pessoas desaparecidas são adicionadas novamente à convivência. 

Funciona como um achados e perdidos da amizade. Você encontra alguém de quem não recebia notícia há séculos. Emergem do túnel do tempo rostos do ensino fundamental, da vizinhança da infância, da academia, do curso do inglês, dos empregos anteriores. Aliás, você não marca encontro, é só aparecer no boteco, lugar dos encontros agendados pelo destino.