FABRÍCIO CARPINEJAR

Campeão mineiro do colesterol

'Recebi uma faixa e uma coroa. Eu que sou conhecido pela minha feiúra estava me sentindo uma Miss pela primeira vez na vida.'

Por Da Redação
Publicado em 18 de outubro de 2020 | 03:00
 
 
'Recebi uma faixa e uma coroa. Eu que sou conhecido pela minha feiúra estava me sentindo uma Miss pela primeira vez na vida.' Hélvio/O Tempo

Saí do meu isolamento, excepcionalmente, para coletar sangue a pedido da nutricionista. Ou melhor, para satisfazer preocupação da esposa, que marcou a nutricionista.  
 
Fazia tempo que não passava num laboratório. Não esperei muito, logo estava na baia branca dando o braço e enchendo várias e várias ampolas, adesivadas com o meu nome e acondicionadas em um pequeno engradado.  
 
Perguntei para a atendente, após o trabalho de cinco minutos concluído, quando os exames ficariam prontos. Ela apenas balbuciou: “Logo, logo!” 
 
Imaginei uma semana, dois dias. Levava o canhoto com números e letras para acessar o site.  
 
Mas, no momento em que eu deixava o laboratório, silenciosamente, sem olhar para os lados, protegido pela minha máscara escura, escuto uma sirene e recebo uma chuva de confetes. Serpentinas voaram e cobriram a minha careca.  
 
Será aniversário da empresa? Um carnaval tomou conta inesperadamente do ambiente formal.  
 
Os televisores da sala de recepção trocaram as habituais senhas de chamado aos guichês por uma surpreendente imagem:  
 
- 255 mg/dL! 
 
Um grupo de funcionários de jalecos azuis surgiu dos corredores com buzinas e apitos.  
 
Gritavam:  
– Temos um novo campeão mineiro do colesterol.  
 
O gerente solicitou um minuto de atenção: 
 
– Gente, o recorde de 245 mg/dL do aposentado de Vespasiano foi quebrado!  Entendam o que estamos testemunhando: a superação dos limites humanos, o apogeu da cozinha de raiz. O índice normal é inferior a 190 mg/dL. 
 
Tentei descobrir quem era, e era eu o alvo das miradas invejosas e cúmplices.  
 
– Eis o novo rei dos botecos! – o gerente ergueu os punhos em minha direção.  
 
Todos me cumprimentavam com os cotovelos. Ganhei aplausos comovidos das famílias e grupos esperando atendimento. Um menino chegou perto e me pediu autógrafo num guardanapo.  
 
Recebi uma faixa e uma coroa. Eu, que sou conhecido pela minha feiura, estava me sentindo uma miss pela primeira vez na vida. Não entendia muito bem a algazarra. O embevecimento coletivo. Os cochichos e os dedos apontados. O entusiasmo que corria pela sala de rosto a rosto.  
 
Um senhor de bengala avançou com a sua curiosidade para cima de mim:  
 
– Qual foi a sua receita para atingir esse número?
 
Tropeiro, muito torresmo, banha de porco?  
 
Busquei explicar que tinha paixão por costela bovina.  
 
– Ah, a gordura da costela é imbatível!  
 
Uma mulher abriu espaço com o celular.  
 
– Posso fazer uma selfie?  
 
Aceitei, envergonhado. Nem questionei o motivo da foto, que logo seria postada nas redes sociais.  
 
– Qual o seu perfil no Instagram? Vou te marcar.  
 
– fabriciocarpinejar  
 
– Ótimo. Seu fígado deve ser lindo, resistente e musculoso.  
 
Eu disse “obrigado”, achei aquela conversa estranha, eu me vi culpado pela abordagem, a minha mulher não iria gostar, assemelhava-se a uma cantada, porém o uso do fígado como atributo físico me confundiu.  
 
Um casal se aproximou para saber se não estava escondendo algum detalhe secreto:  
 
– Tem certeza de que não há fritura envolvida em sua performance? Nenhum pastel de angu?  
 
Neguei. Não me recordava de ser assíduo do angu, tributário mesmo do velho churrasco, com carne sangrando e lascas comidas na gamela depois de servir todo mundo de casa.  
 
Antes de me despedir, atordoado com o carinho do público, o gerente ainda ofereceu cortesia:  
 
– Seus exames são por nossa conta!  
 
– Não precisa, tenho convênio médico.  
 
– Faço questão. Nem sempre podemos conhecer um líder de perto.