FABRÍCIO CARPINEJAR

Carta para minha mãezinha

'Saudade de passar as mãos pelos seus cabelos grisalhos e ouvir de sua parte que todo carinho é bom, mas nem por isso preciso estragar o seu penteado'

Por Da Redação
Publicado em 04 de julho de 2021 | 03:00
 
 
Hélvio

Estamos distantes há um ano e meio, desde o início da pandemia. Eu aqui em Belo Horizonte (MG), você em Porto Alegre (RS). Já perdi os seus aniversários de 81 anos e 82 anos, dois dias das mães, duas Páscoas. 
 
Ficamos nos falando por chamadas de vídeo, tenho mandado cartas, encomendado alguns almoços, enviado livros e vinhos, mas sinto que não é suficiente para agradecer o seu riso de orquídea ressuscitada. 
 
Saudade de passar as mãos pelos seus cabelos grisalhos e ouvir de sua parte que todo carinho é bom, mas nem por isso preciso estragar o seu penteado. Saudade de seu abraço de poncho, de enfiar a cabeça em seus ombros e sentir o perfume que nunca mudou, de maçã verde. 
 
Em nossa distância, há tanta intimidade. 
 
Queria cozinhar para você, recebê-la em nossa casa que ainda não conhece na capital mineira, buscá-la no aeroporto, preparar a sua cama e seu café. 
 
Mas você não abre mão de viver sozinha, de sua independência, de sua horta e jardim. Teimosa que só você mesma, não pretende ser dependente de nenhum filho. Já conheço a sua resposta: sou velha, mas não inválida. 
 
Eu mostraria o quanto somos felizes por aqui, separaria o melhor queijo com goiabada de sobremesa, esquentaria uma canjica, eu me valeria do tropeiro e do frango ao molho pardo para impressioná-la, esperaria seu comentário jocoso que engordei, sinal de que meu casamento com Beatriz anda próspero. Iríamos rir das calorias adquiridas pelo amor. Deixaria, inclusive, que contrariasse as recomendações e que comesse uma costelinha de porco com as mãos, roendo os ossos, só para depois limpar o seu rosto com o guardanapo e ficar próximo de seus olhos de botão, agulha e linha. 
 
Mãezinha, até hoje eu uso as costas dos papéis usados. Jamais deixo de reaproveitar os dois lados da folha. São árvores que não serão cortadas. Lembro de sua lição de fazer bloquinhos juntando as resmas avulsas. 
 
Se sou escritor, é porque você não permitiu que eu duvidasse de mim. Fui seu livro, você foi a minha primeira leitora. Encapado com o papel-presente, como costumava fazer para proteger as obras didáticas escolares. 
 
Você me ensinou a ler e a escrever quando a escola já tinha desistido de mim, quando o médico havia diagnosticado retardo mental, quando os colegas zombavam do meu atraso, quando não havia esperança de pertencer a esse mundo. 
 
Você abriu a porta de minha cura. Estava adoecido de quê? De falta de confiança. Não acreditava mais em mim porque só escutava absurdos e ofensas a meu respeito. 
 
Mãezinha, o mais importante e que nunca lhe disse (e é o momento de dizer tudo e evitar ambiguidades), foi quando me deu a chave da porta da minha saúde emocional. Não ficou segurando a porta. Viu que eu não poderia permanecer sempre junto de sua saia para ser ajudado. Tinha que andar com o meu próprio coração. 
 
Chegou em casa do trabalho com um caderno para mim. 
 
- Um presente para você! 
- Mas eu já tenho todos os cadernos da escola, para todas as disciplinas, não preciso de mais nenhum. 
- Esse não é para escola, é para sua vida, é para escrever tudo o que você ensinará para você mesmo - seus sentimentos, suas vontades, seus desejos.
 
De um ato banal, de uma oferta singela, descobri a minha vocação. Aquele cheiro de papel novo tornou-se o início de tudo. Jamais parei de escrever naquele caderno. Há quatro décadas mantenho o hábito de me ensinar, de me observar, de expor o que penso para aproximar as minhas palavras de minhas atitudes. 
 
Essa carta é mais uma página daquela lembrança. Mais uma página de minha gratidão infinita. Mãezinha, se você não existisse, eu a inventaria todo dia dentro de mim.