Fabricio Carpinejar

Poeta escreve às sextas no Magazine e no Portal O Tempo

Choque térmico

Publicado em: Sáb, 26/03/22 - 03h00

Quando eu vim para BH, entrei direto no estúdio para conduzir um programa de tarde na querida rádio Itatiaia, sem nenhuma adaptação, sem nenhuma transição.

Eu achava que iria causar.

E causei estranheza.

Foi um choque para os ouvintes, não para mim, que já estava acostumado com o meu sotaque e a minha maneira de falar.

Do meu lado interior, nada parecia estrangeiro. Mas, por fora, ninguém me entendia.

Imagine colocar um porto-alegrense de raiz, munido de “capaz”, num programa diário, logo depois do almoço, num dos maiores canhões de Minas.

Gaúcho discursa gritado, demonstra intimidade implicando, pega no pé até perceber que pode estender a mão, brinca com o contraditório e faz o papel de advogado do diabo com prazer para testar o alcance das teorias do interlocutor.

Exatamente o contrário do mineiro, que conversa pausado, que gosta de perder tempo para criar clima, que expõe somente o que acredita, que deixa as pessoas à vontade e jamais compra briga de frente.

Não sei como sobrevivi por um ano. Ou melhor, não sei como a audiência me aguentou por um ano.

Lembro que conduzia consultório sentimental na terça-feira e atendia ligações ao vivo. Uma jovem abriu o seu coração: 

– Meu marido me traiu, está arrependido, relatou que não existiu nenhum envolvimento emocional, foi um momento isolado, aceito de volta?

Respondi do meu jeito gaudério, faca na bota, cheio de ironias:

– Pode aceitar, mas ele terá que melhorar as suas desculpas na próxima traição. Ele precisará, no mínimo, ser mais inteligente. Já que infiel ele continuará sendo.

Houve um silêncio sepulcral do outro lado da linha. Ela não absorveu o meu humor. Até porque estava desabafando algo sério, difícil, doloroso, secreto. Com certeza, julgou que eu faltei com o respeito.

Só que o gaúcho resolve conflitos e crises à parte da graça e do esculacho, normalizando o desespero. Dá a volta por cima pela risada, forma esperança pela autocrítica. Eu não estava debochando, porém quem era de uma cultura diferente não havia recebido meu manual de instruções para digerir a minha dinâmica de sinceridade fulminante.

Ofereça um minuto para o gaúcho, e ele sai atacando. Ofereça um minuto para o mineiro, e ele sai se defendendo. São posturas antagônicas.  
Tanto que a minha colega de bancada e de microfone, Cássia Cristina, agia como minha tradutora, mediando as pontas e arestas das minhas palavras. Realizava uma transcrição simultânea do meu gauchês para o mineirês.  
Ela repetia o que eu dizia de uma forma mais mansa, calma e serena

Parecia um novo idioma.

O conteúdo da minha mensagem não feria, e sim o modo afoito e agressivo dela. Era apenas uma questão de tratamento, de roupagem, de tirar a guaiaca da cintura das frases.

Hoje já aprendi a me comunicar com discrição e, muitas vezes, sou reconhecido como se fosse daqui. As aulas presenciais com a minha esposa me ajudaram a conter a passionalidade. Jogo conversa fora antes de jogar conversa para dentro.

No começo da minha estada, nem os motoristas do Uber gostavam de mim. Eu entrava no carro mudo e partia calado, extremamente prático. Não trocava nenhum dedo de prosa, a não ser os cumprimentos parcos de chegada e de despedida. Minha nota de passageiro de Porto Alegre caiu de 4,93 para um assustador 4,60 em Belo Horizonte. Já estava naquela situação de ter corridas negadas pelos condutores. Reparavam a minha cotação e desistiam, fugindo de encrenca.

Voltei à minha média com afinco. Logo gabarito o 5.

A superação custou um imenso sacrifício de leitura comportamental. Chego a ser chato de tão educado, chego a ser santo de tão paciente.

Encontrei em Minas minha versão diplomática. Estou pronto para o Itamaraty. E, dessa vez, não é piada.

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