FABRÍCIO CARPINEJAR

Descendentes diretos de São Francisco de Assis

'Já testemunhei prosa com gatos, cachorros, hamsters, papagaios, era a primeira vez que assistia a esse enredo entre uma mulher e um bem-te-vi'

Por Da Redação
Publicado em 02 de agosto de 2020 | 03:00
 
 
Ilustração coluna Fabrício Carpinejar Hélvio/O Tempo

- Amooor, você veio, amooor da minha vida, que coisa boa!
 
A vizinha do edifício ao lado gritava. Partilhamos janelas no mesmo andar. Tive que ser indiscreto e espiar a balbúrdia apaixonada pelo vidro da cozinha. 
 
Havia pousado um bem-te-vi na varanda. 
 
Raciocinei que fosse efeito da quarentena. Minha vizinha endoidou: começou a papear com os pássaros. Conversava mesmo, a ponto de contar que estava trabalhando, que recém terminara um projeto difícil. 
 
Seria mais uma alucinação do isolamento social depois de quatro meses, pelo jeito era a carência de pessoas levada ao extremo. 
 
Já testemunhei prosa com gatos, cachorros, hamsters, papagaios, era a primeira vez que assistia a esse enredo entre uma mulher e um bem-te-vi. 
 
Ela saudava a pequena ave de papo amarelo e de penacho engomado de Elvis como um namorado saudoso. Jogava alpiste para a festa das asas. Os dois davam claros sinais que se entendiam. 
 
Com o tempo, notei que a sua extraordinária visita vinha sempre pontualmente, às 17 horas. Todo fim da tarde ele cantava a pleno pulmão, em serenata vespertina, ela largava tudo e surgia de dentro do ambiente, surpreendida e comovida, para alimentá-lo. Eles se movimentavam como se dançassem juntos. Havia um encantamento na coreografia. Ele saltitava, ela incentivava a alegria com elogios. O encontro durava vinte minutos, não podia ser casualidade. Um engano não dura tanto tempo. 
 
O mineiro tem o dom de traduzir os animais, descendente direto de São Francisco de Assis. Como é egresso da mata e das serras, convive harmoniosamente com os dialetos do chão e do ar. Não se sente incomodado com a aparição deles. 
 
Não levará um susto como eu, absolutamente urbano, com um bugio na árvore, um quati na folhagem, um jacu atravessando a rua. Eu vou querer filmar e tirar fotos, para meus registros inéditos de zoológico a céu aberto, já o morador local estranhamente vai se aproximar e perguntar o que ele está fazendo. Se perigar, fornece informações do caminho a ser seguido. 
 
Eu notei a façanha poliglota quando fui levar feijoada para o meu amigo Vinícius, que mora na Estância Serrana, condomínio em Belo Horizonte (MG). Ele saiu para caminhar, deixou a porta aberta e um macaco-prego entrou em sua casa, levantou a tampa da panela no fogão e fez um banquete sem precedentes. Não sobrou nada de um litro de feijãozinho bem temperado, com baio, orelhas e rabo de porco (nem sabia que macaco comia porco). 
 
Só legou pegadas pretas pelas mesas e corredores. Em vez de reclamar, ofender ou, pelo menos, se horrorizar com o meliante faminto, ele achou natural. Já assumiu as despesas do seu convidado, como um filho avulso, um dependente a mais em sua responsabilidade, um mascote das distrações. Desconfio que reserve para ele uma toalha dobrada em cima da cama no quarto de hóspedes. 
 
Tratou ainda de defendê-lo: “tadinho, devia estar desesperado”. 
 
Nem aí para o meu esforço em preparar a feijoada, ao meu trabalho de cozinheiro, que consumiu uma manhã inteira. Por pouco, diante de sua monumental ternura pela floresta, não virei um bicho.