FABRÍCIO CARPINEJAR

Mineiro come até o que não gosta

Quando eu não gosto de algo, eu não como. Deixo de canto. Recuso.

Por Da Redação
Publicado em 12 de março de 2022 | 03:00
 
 
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Quando eu não gosto de algo, eu não como. Deixo de canto. Recuso. Nem me demoro para o espetáculo da careta.

Mineiro, não, ele continua comendo quando não gosta. Até o que não gosta. Nem é questão de desperdiçar a comida, mas não perder o seu tempo.

Isso é uma ciência nova em minha vida. Mineiro merece ser estudado.

Ele briga para comer o que não tem a mínima preferência.

Nesta semana, eu degustava feliz uma bandeja de kiwi, cortadinho em rodelas, na frente da televisão. Curtia o meu momento zapeando os programas esportivos.

Minha esposa, que detesta kiwi, me encarou e perguntou se eu não iria oferecer e se meus pais não me ensinaram a dividir.

Estranhei o gesto de interesse, quase de ataque a uma suposta sobremesa escondida. Pensei que ela recuou na sua restrição, era mais uma convertida da fruta verde. Ou que colocou a saúde acima de tudo e desejava aproveitar os seus benefícios glicêmicos e de imunidade.

Constrangido, estendi o garfo em trenzinho (versão local do aviãozinho), e ela abocanhou um pedaço. E outro. E outro. Não se resumiu a uma prova, tornou-se de repente acionista majoritária do meu prato.

Depois saiu dizendo:

– Que ruim! Não gosto de kiwi.

Sua reação parecia de quem nunca tinha provado kiwi. Como se fosse a sua primeira vez.

Eu fiquei raciocinando o despropósito, achei inclusive uma injustiça: por que ela desfalcou o meu prazer se não tinha nenhum paladar com aquilo?

Não bastava uma fatia para recordar a antipatia? Precisava ser três fatias para esnobar em seguida?

Ou será que o mineiro oferece uma segunda chance, faz uma repescagem dos seus hábitos, busca mudar de opinião a respeito de um sabor?

Ou talvez seja uma curiosidade amnésica. Ou uma gula infinita. Ou uma teimosia esquisita da sua fé de jamais se dar por vencido.

A questão é que ele não rejeita uma experiência gastronômica. É o mais aventureiro dos comensais, da selva à praia, da montanha ao gelo. Não tem medo de cobra, rã, lagarto, desde que bem temperado. Sua tese é que qualquer coisa pode ser digerível com uma pimentinha. O molho é o coração das refeições.

Tampouco ele emprega termos fortes de completa aversão, como “odiar”. Mineiro não odeia em definitivo porque um dia pode precisar. Sua vontade depende da sobrevivência. Prioriza a sua necessidade além dos seus arroubos. É ele e suas circunstâncias. Se não há tropeiro, serve um caldinho de feijão. Se não há caldinho de feijão, o torresmo já ajuda. Há sempre um complemento possível ou uma substituição provisória. Comida é da hora, sem idealização exagerada.

Se eu não encontro um item cobiçado no cardápio do restaurante, quando está em falta, perco o apetite, já a minha esposa não sofre e improvisa.

Repare que também não sobra nada na geladeira do povo de Minas. Mesmo o que mineiro não tem grande vontade, acaba sendo consumido por último na falta de algo melhor.

Ele é quieto porque vive comendo. Até o que não gosta. E é falta de educação falar com boca cheia e explicar a atitude. Resta como mais um dos mistérios da espécie.