FABRÍCIO CARPINEJAR

Nossos laços

'Não tenho como explicar que os meus cadarços soltos são uma prova de amor.'

Por Da Redação
Publicado em 07 de agosto de 2021 | 03:00
 
 
Hélvio

Nunca vi um lugar em que tanta gente avisa que os seus tênis estão desamarrados. 

Mineiro realmente se preocupa com a possibilidade de que você tropece. É um socorrista do olhar. Leva em alta conta a prevenção nos passeios públicos. 

Situação que se agrava porque até hoje não amarro os cadarços. 

Quando saio na rua, pareço uma celebridade, a todo momento parado. Mas não é porque sou famoso, são meus pés que chamam atenção. 

 – Cuidado, vai cair! 

Tenho que me agachar e fingir que cruzei as pontas dos fios, para dispensar o auxílio do transeunte. Eu embaralho de qualquer jeito para continuar o meu trajeto. 

Mais 500 metros, enfrentarei nova interrupção, nova curiosidade, novo apelo, novo diálogo para evitar que beije o chão. 

Mineiro é um salva-vidas inato de sapatos. Talvez porque esteja acostumado com o corpo inclinado nas montanhas e ladeiras e preserve a experiência pessoal de que o tombo pode ser perigoso. 

Se eu tivesse aprendido a andar de bicicleta aqui, pensaria diferente. 

Mas venho de espaços planos e pampeanos, de linhas retas, não estou acostumado a prever as temeridades da altura. Nunca caí na fase adulta pisando em mim, piso apenas nos pés da minha esposa quando dançamos. 

Não tenho como explicar que os meus cadarços soltos são uma prova de amor. 

Sei costurar, sei colocar gravata, sei fazer tricô, e não sofreria nenhuma dificuldade de cruzar as linhas em igual direção. 

Eu mantenho um voto de lealdade e não o quebro por nada neste mundão. 

Na minha infância, eu sofria muito com o constrangimento dos nós desfeitos e invejava os irmãos que jamais tinham que repor as cordas. Ainda mais que jogava futebol e perdia muito tempo consertando o problema nas laterais do campo. 

Tudo se explicou quando vi o meu pai amarrando os seus tênis antes de sairmos para um passeio. Ele tampouco realizava a justaposição perfeita, enrolava como eu. Ou seja, os meus irmãos se valeram de outros mestres em seus percursos. 

Eu notei que havia sido educado por ele a despistar. Ele me repassou o que conhecia ou, melhor, o que desconhecia. 

Ele dividiu a sua sobrevivência, a sua malandragem comigo. O importante é que, mesmo não dominando o assunto, não deixou de me ensinar. Postou-se humildemente ao meu lado para propor o seu jeito de lidar com a vida, a sua sabedoria alternativa e leiga. 

 Desde pequeno, mantenho essa ligação. Eu não o corrigi, ele não me corrigiu, não nos corrigimos, como um hábito sagrado que nos une e não precisa ser reparado. 

 Há quem se orgulhe de herdar as virtudes do pai, eu também me envaideço de prolongar os seus defeitos. 

Nossa cumplicidade é maior porque corremos contra a maré. 

Somos os únicos da família com os caminhos tortos, escoteiros e marinheiros colegas da escola de tropeços. 

Aos 82 anos, ele não amarra os seus cadarços. Aos 48 anos, eu não amarro os meus cadarços. Estamos amarrados no mesmo destino. Quando ele se ajoelha, eu imagino que estou me ajoelhando junto. 

É uma forma de rezar a nossa amizade para sempre. É um segredo só nosso. Um laço só nosso.