Fabricio Carpinejar

Poeta escreve às sextas no Magazine e no Portal O Tempo

O apego ao telefone

Publicado em: Dom, 07/06/20 - 03h00
Ilustração coluna Fabrício Carpinejar | Foto: Hélvio/O Tempo
Não tenho paciência para atender telemarketing. 
 
Já a minha esposa não só atende como puxa conversa. Tem uma disponibilidade inacreditável ou de dizer que não se encontra ninguém com esse nome em casa ou para explicar que não deseja nenhum crédito. Ainda desliga agradecendo e partilhando Deus na despedida. 
 
Eu fico bobo com a trova inesperada. São dez minutos de perguntas e respostas com quem jamais enxergou na vida.
 
Ela não é ingênua de passar informações confidenciais, mas tira proveito daqueles instantes de pé. Busca dar uma informação de qualidade quando interpelada, sem jamais perder o respeito, sem jamais se sentir invadida. 
 
Se pudesse oferecer pão de queijo e cafezinho coado pela linha, ela não pensaria duas vezes. 
 
Mineiro acolhe com satisfação até ligação por engano. O trim trim é uma possibilidade de fazer uma nova amizade. 
 
Não conheço gente que goste tanto de telefone. Se são arredios e tímidos no primeiro contato presencial, são loquazes na distância. Confidenciam o seu dia com estranhos, invocam semelhanças, dividem angústias. Não se economizam no fiado dos interurbanos. 
 
Beatriz realiza ronda com o seu círculo de amizades. Durante a manhã, emenda o convívio com as suas melhores amigas. Nem sei mais com quem está falando. Nem percebi quando desligou uma chamada para começar outra. Talvez agora seja Fernanda, talvez seja Poly, talvez seja Marina, talvez seja tia Norma...
 
Haja fôlego para repetir detalhes e desdobrar ideias. Como se participasse de uma live de três horas ininterruptas. Não se cansa de aperfeiçoar as histórias. Na hora de dar tchau, lembra de mais um pormenor e renova a lábia. 
 
É um bailado pela casa. Dança pela sala, pelo quarto, pelo escritório, senta no sofá, estica as pernas na cama, escorre os braços pelo sol da janela, nunca deixando a peteca cair. Ouve com atenção plena, transformando o ouvido numa extensão direta do pensamento. 
 
Mineiro mantém a visão interiorana do telefone como patrimônio da família, para socorrer os parentes longe, e não mudou o costume com a facilidade da comunicação. Valoriza o telefone fixo por uma questão de prevenção, caso o celular não funcione. Não corre o risco de não ser localizado e ser o último a saber de alguma tragédia ou bonança. 
 
O aparelho permanece no centro da sala, numa mesinha, com uma toalhinha de crochê por baixo, como no século passado. Não duvido que algumas residências ainda conservem a lista telefônica, a antiga Bíblia dos sobrenomes da cidade. 
 
Apesar da comodidade do vídeo, ainda prefere seguir solitariamente com a voz, na liberdade do timbre. Ele se encontra à vontade não sendo visto, não precisando cuidar da aparência, seguindo com as suas obrigações e tarefas mentais simultaneamente, não travando a disciplina doméstica, não parando a ordem de suas necessidades. 
 
A alma mineira tem um poder radiofônico de oratória, de locução de sua ternura, de narração de seus feitos. 
 
Quando olho para minha esposa, acho mesmo que ela anda com um radinho de pilha aquecendo as orelhas.

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