FABRÍCIO CARPINEJAR

O código de área

'A escolha apresenta um fundo emocional de irrestrito apego. Ele espera voltar um dia. Todo mineiro espera voltar um dia para o seu Estado'

Por Da Redação
Publicado em 27 de fevereiro de 2022 | 03:00
 
 
O código de área Hélvio

O mineiro pode se mudar para longe, pode morar numa outra capital, pode seguir o caminho profissional distante de suas raízes, mas ele não muda o código de área do seu telefone. Não renuncia o prefixo do seu torrão natal.
 
É a senha do cofre do seu pertencimento. Do seu coração. Se há parte do seu bando residindo de onde saiu, não tem coragem de promover a alteração. 
 
É como se o endereço da conversa permanecesse o mesmo. O endereço da voz. O endereço da falta. 
 
Se morava em BH ou região metropolitana, mantém o 31. Se morava em Cataguases, mantém o 32. Se morava em Uberlândia, mantém o 34.
 
Ele talvez alegue que não prestou atenção neste detalhe, ou não sentiu necessidade da troca, ou ainda queria conservar o seu WhatsApp, mas é aparência. A escolha apresenta um fundo emocional de irrestrito apego. Ele espera voltar um dia. Todo mineiro espera voltar um dia para o seu Estado. 
 
Entende qualquer viagem como provisória. Empregos são eternos intercâmbios. Seu interesse é encerrar a trajetória junto com o seu pessoal, dividindo banalidades e torresmo. Aposentadoria é tão somente regressar para o seu chão de ferro. 
 
Os tentáculos da filiação são preservados no lugar mais íntimo da personalidade, no timbre, no uso da voz, no seu contato telefônico, com a mania de ligações intermináveis a quem ficou perguntando sobre o paradeiro dos parentes. 
 
Apenas em Minas primo e prima são reconhecidos como irmãos e tio e tia são acolhidos como segundo pai e segunda mãe. Trata-se de uma concepção única de família estendida. 
 
O mineiro não é capaz da deserção dos costumes. Há gestos que não são apagados do seu DNA. Como levar o DDD para a vida inteira ou abrir o pão de queijo para colocar lombo ou linguiça. 
 
Realize um teste. Ofereça um pão de queijo a um mineiro e ele vai criar um sanduíche em minutos. 
 
Ou pegue o celular do mineiro a milhas de distância de seu berço e verificará no ato que estará o código intacto. 
 
São coisas inexoráveis da sua prática do afeto. 
 
Já viu mineiro perdendo sotaque? Jamais. Diferente da maior parte das regiões, ele fica ofendido se alguém diz que ele não tem mais o mineirês na veia. Inventa de resgatar a linguagem mais crua e remota para desbancar a suspeita. 
 
Neutralidade é malvista, amaldiçoada, ingratidão. Cê é fí di quem? é a pergunta existencial mais importante daqui, muito mais do que o shakespeariano “ser ou não ser”. A família vem antes das escolhas. 
 
Mesmo que se transfira para o exterior, permanecerá com um número telefônico paralelo. Não se desfaz do elo com o seu lado primitivo, com a sua origem. 
 
Tanto que mineiro jamais abrirá Centro de Tradição Mineira (CTM) em outros lugares, o equivalente ao Centro de Tradição Gaúcha (CTG), porque jamais se despediu de verdade. Isso seria aceitar o aceno de adeus, a morada definitiva numa nova cultura. 
 
Mineiro não é só solidário no câncer, como afirmava jocosamente Otto Lara Resende. Mas solidário na cura do câncer e da saudade.