Fabricio Carpinejar

Poeta escreve às sextas no Magazine e no Portal O Tempo

O mistério da moringa

Publicado em: Dom, 22/11/20 - 03h00
"Já tentei tomar água dela. Não fui permitido. É o seu território exclusivo." | Foto: Hélvio/O Tempo
A avó de minha mulher tinha uma moringa de barro na sua mesinha de cabeceira. Sua mãe conservou a peça. Beatriz segue o ritual familiar e permanece com a água ao lado da cama. 
 
São três gerações mineiras matando a sede de madrugada. 
 
Ela não abre mão da jarra antes de dormir. Desde que nos conhecemos. Desde a primeira vez. É como um santuário junto aos livros e aos óculos de leitura. 
 
Mesmo em nossas viagens, mesmo dormindo em hotel, leva junto consigo. 
 
Nem a um escapulário no peito demonstraria tamanha fidelidade. 
 
Se eu perguntasse o que ela salvaria num incêndio, certamente teria como resposta a moringa. Deixaria o celular e sairia com ela, deixaria as roupas e sairia com ela. 
 
Ela não atravessa uma noite de sua existência sem o seu conjunto perto.
 
Eu fico enfeitiçado com o seu rigor durante nossa longa convivência. Com aquele espelho potável de rio dividido entre perfis de épocas distintas, comunicando-se pelo gesto repetitivo de se servir segurando no indestrutível bojo. Naquele instante, enquanto os maridos dormem, unem as suas raízes, são juntas no pensamento, são uma só. Uma sobreposição de rostos e coragem abrindo espaço num mundo machista. 
 
Nenhuma mulher é solitária dentro do sangue. É a soma de todas as mulheres que a antecederam.
 
Tenho convicção que sua vó está viva na moringa, que sua mãe está viva na moringa. Nela, não há as cinzas das duas, mas muito mais: os sonhos de cada uma. 
 
Os desejos e anseios do triunvirato não desistirão de buscar as palavras, até que as mulheres recebam de modo idêntico aos homens em suas profissões, que consigam meio a meio da representatividade em cargos políticos, que não sejam mais desacreditadas nas denúncias, que desfrutem da liberdade de vestir, de falar e de mudar de opinião. 
 
Quem nasce mulher no Brasil é obrigada a renascer sempre. É alvo de preconceitos, do subjugo doméstico, da condenação maternal de ficar em casa cuidando dos filhos, da ausência de divisão de tarefas, da crença de que a esposa é a provedora sexual, da coisificação massiva, das brincadeiras excludentes das rodas masculinas. 
 
Aquele conjunto do início do século passado jamais testemunhou igualdade consistente com o passar do tempo. 
 
A moringa é o céu da boca dividido entre a avó Clara, a mãe Clara e Beatriz. 
 
Já tentei tomar água dela. Não fui permitido. É o seu território exclusivo. 
 
Pensei coisas absurdas, natural do macho quando enfrenta pela primeira vez o que não pode fazer e experimenta a oposição que a mulher sofre várias vezes ao dia. 
 
Criei teorias fantasiosas, que não deve ser abastecida do filtro, que é um alambique secreto de cachaça, um elixir da juventude, uma poção milagrosa para acordar de bom humor - porque Beatriz desperta cantando, brincando, festejando o café, muito mais disposta do que eu. Queria me certificar se não é dali que vem a sua energia, a sua disposição, a sua gargalhada antes das dez horas. 
 
Mas nada disso é verdade. A lição da moringa é que o homem não pode tudo. Nem tudo é para ele. Durma com essa!

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