Fabricio Carpinejar

Poeta escreve às sextas no Magazine e no Portal O Tempo

O poder de estar em dois lugares ao mesmo tempo

Publicado em: Dom, 15/09/19 - 03h00

Santo Antônio não é o padroeiro dos mineiros pelas suas bênçãos casamenteiras. Mas acredito que por outro poder menos conhecido: a ubiquidade, pelo fato de coexistir em dois lugares inexplicavelmente. 

O pai de Antônio foi injustamente condenado, em Lisboa, por um assassinato que não tinha cometido. Antônio, que estaria pregando numa missa em Pádua, recebe o aviso de um anjo e surge em Lisboa, fazendo a vítima sair do seu caixão, inocentando o pai, enquanto termina o sermão religioso em Pádua.

Mineiro tem o dom de estar em vários locais ao mesmo tempo. Ele não sabe dizer “não” a um convite. Pode ter duas festas no sábado, em igual horário, falará “sim” para ambas, depois ele pensa em como conciliar.

Ele confunde a cabeça dos organizadores das festividades. Porque só há confirmações. Pelo papel, existirá superlotação. Não se viu nenhuma desistência. 

Eventos familiares no Facebook têm sempre centenas de certos, quando no final contará com dezenas de verdadeiros presentes. 
O mineiro jamais nega quando é chamado por um amigo ou familiar.

Difícil, a princípio, para quem é de fora, decifrar o temperamento carinhoso, mas ele odeia dizer não de cara. Por isso que é conhecido pelo seu silêncio folclórico e inescrutável. Por isso que é visto como bebe-quieto e come-quieto. 

Mineiro cria mistérios das situações mais triviais, estabelece suspense de sua rotina. Como um técnico de futebol que esconde a escalação de seu time com o treino fechado, para surpreender o adversário. 

Significa uma desfeita declarar imediatamente que não há como comparecer a um encontro. Até soa como grosseria e descaso. Afinal, foi eleito para um momento único entre muitos conhecidos, o mínimo que se espera é o agradecimento por se sentir honrado. 
Não que o mineiro esteja mentindo, tentará um jeito mágico de surgir nas mais distantes atividades. Deixa para decidir em cima do laço. Até lá, fica pensando como contentar a agenda. Realiza malabarismo com a família. Previne conflitos desfrutando do longo espaço das vésperas. 

Não pretende perder parte da história de ninguém importante. Assim evita a dispensa, ainda que tenha consciência da duplicidade, e concorda para depois achar um jeito. 

É impossível aceitar tudo, mas o mineiro aceita. Ele ama o impossível. Ama os milagres.

Não conheço um temperamento tão diplomático, capaz de equacionar desejos e jamais ficar de mal com alguém. Tem sangue-frio para aguentar a indecisão até o último minuto. 

Mineiro não briga, não bate de frente, é educado demais para a hostilidade, confia que o destino ajeitará as arestas. Ele anda devagar para o tempo correr.

Nunca sei onde estarei no sábado e no domingo, por exemplo. Eu me desespero com o excesso de compromissos, já a minha mulher nunca perde a tranquilidade, acostumada com chá de fraldas, casamento, debutante, aniversários no único fim de semana. Ela propõe uma maratona, um pouquinho em cada situação, às vezes não tem como pular de bairro em bairro em tão escasso intervalo.

A tática que ela usa é comprar presentes para todos. Sem exceção. Quando ela não consegue marcar presença, surge ao longo da semana em uma visita inesperada com a lembrança. Não se desculpa, apenas continua os afetos sem drama, escândalo e tragédia.

Santo Antônio vive entre nós. Está no seu túmulo na Itália e em Minas Gerais.

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