FABRÍCIO CARPINEJAR

Quando a boneca é mãe da criança

'Até porque ter tudo o que se quis quando pequeno é jamais aprender a ser adulto, é nunca lidar com a falta'

Por Da Redação
Publicado em 02 de abril de 2022 | 03:00
 
 
QUANDO A BONECA É MÃE DA CRIANÇA Ed

 
Beatriz sempre desejou a boneca dentuça da Mônica.  
 
Ela somente a conquistou em meu presente de um ano de relacionamento.  
 
Casamento é completar a infância.  
 
Ela não brincou de boneca, mas brincou de ser criança.  
 
De modo nenhum a minha esposa enfrentou uma meninice desassistida, contou com pais carinhosos. Talvez tenha aguardado o capricho da telepatia – ser adivinhada – ou só não insistiu o suficiente.  
 
Foi uma lacuna providencial e redentora para fortalecer a nossa confiança.  
 
Até porque ter tudo o que se quis quando pequeno é jamais aprender a ser adulto, é nunca lidar com a falta.  
 
Há uma história de Kafka, o escritor tcheco de “A Metamorfose”, que ilustra a superação da carência.  
 
Ele estava lendo jornal no banco da praça quando escutou, ao fundo, uma menina chorando porque havia perdido a sua boneca.  
 
Ficou tocado pelo desespero sincero. Ela gritava mais do que chorava. Usava o próprio choro seco para chamar a boneca, como se ela fosse capaz de ouvir e voltar caminhando.  
 
A criança nem recorria a lágrimas para não perder tempo de procurar. 
 
Kafka parou o que vinha fazendo e se dispôs a ajudar na expedição. Reviraram canteiros, brinquedos, arbustos, chegaram a olhar o alto das árvores, e fracassam no resgate. Despediram-se com a frustração de não ter controle sobre os desígnios da vida.  
 
O autor mal conseguiu dormir de noite. Acalmou-se quando veio a ideia de escrever uma carta como se fosse a própria boneca falando.  
 
Na manhã seguinte, na mesma praça, ao ver a menina com a babá, explicou que trabalhava como carteiro de bonecas e entregou um envelope.  
 
Na folha, com letra tremida, a boneca pedia desculpas por não ter avisado, perdão pela ausência repentina, mas ela recebeu um convite para viajar com outras bonecas pelo mundo e não podia recusar.  
 
Ao longo de semanas, sempre havia uma carta nova com a boneca dizendo em que país se encontrava e descrevendo o que vinha aprendendo com cada experiência e cada cultura.  
 
Depois de um mês, a menina voltou a se entristecer. Falou que morria de saudades de sua filha, que ela já havia permanecido muito tempo fora.  
 
– Não quero mais cartas, mas a boneca de volta.  
 
Então não restou a Kafka senão comprar uma boneca.  
 
Quando ele a entregou, a menina, que de boba não tinha nada, recusou a substituta.  
 
– Não é a minha boneca, você está me enganando! 
 
Kafka, com toda a paciência, se aproximou dela, olhou firme em seus olhos, segurou as suas mãozinhas, e explicou: 
 
– Ela correu o mundo, conheceu pessoas, amou, dançou, divertiu-se, alcançou a liberdade de seus pensamentos, realizou os seus sonhos, conseguiu se virar sozinha, e você não queria que ela se transformasse? Viver nos transforma. 
 
A menina entendeu e se transformou junto com a boneca, encaixando-a docemente em seu colo.