FABRÍCIO CARPINEJAR

Se eu fosse você

Dizem que você se torna seu ascendente depois da meia-idade. Eu sou de escorpião, meu ascendente é peixes

Por Fabrício Carpinejar
Publicado em 15 de março de 2024 | 03:00
 
 
Fabricio-Carpinejar Foto: Editoria de Arte

Dizem que você se torna seu ascendente depois da meia-idade. Eu sou de escorpião, meu ascendente é peixes.

O curioso é que a minha esposa é exatamente o meu contrário: ela é de peixes com ascendente em escorpião.

A máxima tem vigorado em nossa casa. Invertemos os papéis, o que é um tanto estranho. Virei Glória Pires, ela virou Tony Ramos. A franquia “Se Eu Fosse Você” entrou em nosso casamento.

Sempre fui vingativo, passional, sangue quente. Ela sempre foi da paz, do “larga disso”, da diplomacia.

Agora sou eu que tenho que dissuadi-la de aceitar uma provocação, ou de mergulhar de cabeça numa briga, ou de entrar com uma ação quando nota um desrespeito aos direitos do consumidor. Houve a troca sumária de espíritos e de comportamento.

Eu era o primeiro a explodir, atualmente me aparto e respiro fundo. A temperatura do meu coração teve o decréscimo de cinco graus. Percebo até um arrepio na nuca, como nunca antes.

Não faço mais escândalos em filas, em engarrafamentos, naqueles tempos parados da existência.

Transformei-me num conciliador. Logo eu, outrora insensível para a compaixão, acostumado a traçar planos maquiavélicos, lentos e inclementes de represália. A paz dos astros se infiltrou em meu sangue.

Venho experimentando essa inédita fraqueza na minha nova versão e sofro, inclusive, de pena de Beatriz, pois adotou a minha sina escorpiana.
Não desejava isso nem para os meus piores inimigos – inimigos que se encontram anistiados diante da minha metamorfose.

Se bem que, entre os ganhos de características, inventario perdas. Antigamente, jamais perdia algo. Era metódico, disciplinado, rigoroso com os meus objetos.

Imagine alguém com graduação em apego e pós-graduação em TOC.

Nos últimos meses, assumi um esquecimento sem tamanho. Nunca me apresentei tão distraído em minha vida. Deixei o meu boné no cinema, a minha garrafinha amarela Stanley no Uber, o meu Kindle no avião, o meu casaco na cadeira do restaurante.

A seção de achados e perdidos invadiu as salas de comando da alma.

Vivo avoado, numa felicidade aérea, num transe de devaneios, uma marca indelével dos piscianos.

Já Beatriz, anteriormente rainha da salve-rainha, não extravia mais nada, nem uma reles sombrinha, e fica chamando minha atenção para que eu reviste meus pertences ao sair de um ambiente.

Se eu, por um instante, não achava meu cartão de crédito, imediatamente o bloqueava. Hoje, se não o localizo na carteira, relaxo. Passam um ou dois dias e não me desespero com o sumiço. Sei que está na minha bagunça e que vou reavê-lo. É uma calma do caos que eu realmente desconhecia.

Beatriz está otimista, questionadora, sensual, misteriosa, prática. 
Eu pareço sensível, sonhador, paciente, intuitivo e romântico.

Quando conversamos, as diferenças são galopantes e cômicas. Ela rouba as minhas falas, eu roubo as falas dela.

Talvez a astrologia tenha nos proporcionado a mais enraizada empatia amorosa: colocar-se no lugar do outro.

Finalmente ela entende o que eu sentia, e eu entendo o que ela sentia.

Nosso entendimento cresceu. Tem mais silêncio, tem mais espaço no silêncio, e o silêncio é mais cúmplice.