Fabricio Miguez

Jornalista, professor especialista em Redação do Enem e autor da coluna “Redação Nota Mil”, às terças e quintas, no programa “Bom Dia Super”

Muito precário e nada elementar, meu caro Watson!

Publicado em: Sáb, 25/07/20 - 03h00

Sherlock Holmes, em “Um escândalo na Boêmia”, já profetizava: “É um erro capital teorizar antes de ter os dados. Insensivelmente, começa-se a distorcer os fatos para adaptá-los às teorias, em vez de fazer com que as teorias se adaptem aos fatos”. Após noventa anos da morte de Sir Arthur Conan Doyle, a lógica do médico escocês faz todo o sentido por aqui. Quando o assunto é a educação brasileira, as teorias até preconizam – mesmo que timidamente – um ínfimo progresso do ensino, mas o fato é que os fatos apresentam um gargalo histórico, sobretudo em relação à produção de textos em modalidade escrita formal da língua portuguesa.

Criado em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio validou uma proposta interessante: melhorar as políticas públicas educacionais por meio da avaliação do desempenho dos estudantes concluintes desse segmento escolar – os “finalistas”, como se diz na terra de Pessoa. Para os parâmetros atuais, o Enem, naquele ano, parece ter sido um fracasso, com somente 157 mil inscritos e 117 mil presentes, em uma prova realizada em quatro horas de um único dia, com 63 questões e “a pureza da resposta das crianças” nas linhas do tema “Viver e Aprender”, ao som de “O que é, o que é?”, de Gonzaguinha, como texto motivador. 

De lá para cá, o Ministério da Educação viveu como um “eterno aprendiz”, pois a vida devia – e deveria – ser bem melhor, e a redação também, of course! Mais de uma década depois, a prova passou por uma repaginada – literalmente – e foi dividida em quatro áreas: Códigos e Linguagens, Ciências Humanas, Matemática e Ciências da Natureza. A caçula da família cresceu e se emancipou: a redação, cujo tema “O indivíduo frente à ética nacional” abordou acomodação, corrupção e Millôr Fernandes – sempre na contramão –, provou que santo de casa não faz milagre. O Brasil, que, textualmente, problematizava os princípios morais inerentes ao cidadão, viu escoar pelas mãos o vazamento da maior avaliação do país, o que gerou R$ 45 milhões de prejuízo aos cofres públicos, além de 37% de abstenção dos candidatos, índice mais alto em toda a história do exame. 

O que é, o que é, então, a redação? Um texto dissertativo-argumentativo, com, no máximo, 30 linhas e, no mínimo, muita, muita coisa para se pensar, a começar pelo verso dessa prosa. De fato, não é uma página em branco; no entanto, ainda não preencheu o seu papel, pois permanece um rascunho bastante precário, com erros capitais e capitulares, em períodos compostos por falta de coordenação, mas com muita subordinação. Com efeito, é indiscutível que rasuras na imagem da prova, falta de coesão entre ofertantes e ofertados, opiniões contraditórias e argumentos não articulados suscitam uma ausência de concordância entre sujeitos com poucos predicados e predicativos. 

Falo isso de “cadeira” – ora pois – denotativa e conotativamente, e as estatísticas não me deixam mentir. Em 2014, dos 6.193.565 participantes, 250 – leia-se “só isso mesmo?” – conquistaram a nota mil. Só que, quanto mais alto, maior a queda. E o topo foi ladeira abaixo. Na última edição, em 2019, apenas 53 estudantes chegaram a essa marca. Só e sós. Novidade nenhuma para quem escutava Gonzaguinha dizer que “o verbo é sofrer”. E a vida? É bonita? É bonita, com certeza. A redação? Nem tanto. 

Fabrício Miguez, jornalista e professor especialista em Redação do Enem
Apresentador da coluna “Redação Nota Mil”, às terças e quintas, no programa “Bom Dia Super”

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