FERNANDO FABBRINI

A barata empoderada

Atenção, escritores, cronistas, autores, poetas: pensem uma, duas, dez vezes antes de botarem suas ideias e sentimentos no papel.

Por Da Redação
Publicado em 04 de julho de 2019 | 03:00
 
 

Atenção, escritores, cronistas, autores, poetas: pensem uma, duas, dez vezes antes de botarem suas ideias e sentimentos no papel. Depois de digitá-los, revisem tudo – uma, duas, dez vezes. E, pelo sim, pelo não, acendam uma vela para santa Cecília, padroeira dos poetas, e outra para são Francisco de Sales, valoroso guardião dos escribas.

Colegas desse ofício ingrato já comentaram a dificuldade crescente que agora envolve o processo criativo. Humoristas – os realmente dignos desse nome – reclamam das incansáveis revisões dos roteiros pela produção, à procura de deslizes que poderiam resultar em processos judiciais movidos por algum “ofendido”, chorando mi-mi-mis e de olho na possível indenização. 

Como se não bastasse, o Brasil acaba de importar, diretamente dos EUA, a mais nova modalidade de censura à criação – incluindo romances, biografias, aventuras, roteiros cinematográficos, peças de teatro. Trata-se do “sensitivity reader”, e já explico o que o cara faz.

Esse “leitor sensível”, que começa a povoar as editoras do mundo, incluindo as do Brasil, vem ocupar o mais novo cargo na hierarquia nebulosa do referido universo. Como ele trabalha?

O sujeito passa o dia lendo manuscritos e, com um marcador de textos em punho, assinala “conteúdos que possam provocar pressões e boicotes” – segundo a reportagem. Graças ao trabalho desse mauricinho sensitivo, as editoras evitam publicar enredos, narrativas, referências, diálogos ou qualquer palavrinha que possa ferir a sensibilidade de seus caros (no sentido financeiro) leitores.

Sabe-se que desses profissionais das canetinhas coloridas não é exigido nenhum conhecimento literário, nenhum recheio cultural. Só importa sua vocação para censor, seu olhar atento de carrasco, decapitando palavras, períodos, parágrafos ou obras inteiras. Em resumo: acaba de ser discretamente inserida em nosso imaginário a “censura elegante”, mais uma chatice repressora e limitadora da criatividade, filhota do insuportável politicamente correto.

Dizem que o papel aceita tudo e que gosto não se discute, só se lamenta. Uma rápida passagem pelas prateleiras das livrarias – com uma paradinha estratégica no balcão de “lançamentos” – dá uma ideia da quantidade de besteiras publicadas diariamente. Mas isso faz parte da história, foi sempre assim. Há bobagens adequadas à preferência de todos, e cada um compra o livro ou assiste ao filme que bem entender. É bom que seja assim.

A indústria cinematográfica, pisando em ovos, vem se protegendo também. Há novas regras que devem ser obedecidas pelo roteirista e pelo diretor. Animais, em histórias infantis, mesmo aqueles horrendos e sanguinários, jamais podem ser “mortos”. São, no máximo, escorraçados pelo herói e escapam com o rabo entre as pernas. Na mesma linha, o príncipe-mocinho-galã jamais “matará” o vilão-cruel-feioso usando suas próprias mãos – com uma espada, digamos. O fim do maldoso acontece por obra do destino ou da natureza. A torre do castelo desaba sobre ele, após o último duelo do filme, por exemplo. 

Refletindo sobre a presença do “sensitivity reader”, tive a sensação de ouvir ruídos e resmungos profundos. Apurei os ouvidos: Nelson Rodrigues, Charles Bukowski, Dostoiévski, García Márquez, Hemingway, Albert Camus, Machado de Assis, Scott Fitzgerald, Truman Capote e tantos outros que mergulharam nas belezas e nos horrores da alma humana estavam revirando-se nos seus túmulos. 

E Franz Kafka, apressado, ressuscitou. Sacudiu a poeira do cemitério judeu de Praga e veio correndo dizer que “jamais teve a intenção de ofender a estimada e respeitada classe Insecta, subclasse pterygota, da ordem blattodea e subordem blattaria”. E que os ecologistas de plantão não o levassem a mal, por favor: a barata é legal, gente fina demais, empoderada e digna de todo o respeito enquanto membro de uma minoria perseguida ao longo da história.