Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

A novela da novela

Publicado em: Qui, 19/10/17 - 02h00

A equipe de produção da TV estava reunida em torno da belíssima mesa de aço escovado com pés de carbono. O superdiretor, à cabeceira, folheava sinopses e mais sinopses, passando lentamente página por página.

– Hum... Não sei não... – disse ele.

Os demais participantes – roteiristas, autores, estagiários – contraíram seus glúteos e se elevaram ligeiramente sobre os assentos. Tensão no ar. O superdiretor continuou:

– Tudo igual... Nada de novo... História de milionário que trucida os sócios, esquarteja a mulher e foge com a grana não vai dar audiência... Não comove mais ninguém. A menos que entrasse outro personagem... Tipo...

– Tipo o quê, senhor? – disse o autor da sinopse, esperançoso.

– Bem, a mulher dele poderia ser uma criminosa com falsa identidade... Foi ela quem assassinou a sogra no passado, mas ninguém sabia... O marido, herdeiro de um império com sede em Dubai, não desconfiava... Às escondidas, ela era amante do sogro e também do contador da empresa, esfaqueia os dois pra ficar com a herança... Um cachorro é testemunha do assassinato.

Outro levantou a mão:

– E se o cachorro fosse uma reencarnação de um irmão pequeno, retornado à vida para proteger a irmãzinha herdeira que nasceu de uma relação fora do casamento? O cachorro se comunicaria por meio de uma médium, uma guru indiana.

O superdiretor continuava inseguro, olhava pro teto.

– Tenho outra ideia!... – gritou lá do fundo um desconhecido. – Vamos fazer a “novela da novela”. Sucesso garantido!

– Explique – disse o superdiretor, entediado.

– Bem... Será uma novela contando como é a produção de uma novela por dentro, a verdade dos bastidores. Como é feita a seleção dos atores e das atrizes... A jornada difícil até o estrelato...

– Hum... Talvez. Prossiga.

– A mocinha inocente veio do interior, sonha em virar estrela... É linda, e isso chama a atenção da equipe inteira. Ela acha que seu talento será suficiente para subir na vida. Depois de muito esforço, ganha finalmente um papel secundário de balconista numa loja da periferia. No segundo dia de gravações, um dos colegas dá uma cantada nela. Com medo, aceita. Cena de sexo atrás do balcão da lojinha, derrubando latas de sardinha e caixas de sabão em pó.

– Depois, é o galã principal quem ataca. Com medo de perder o emprego – mas também, lá no fundo, achando o máximo sair com o bonitão –, ela topa. Nova cena de sexo na casa de praia deserta do galã. Deslumbrada e aceitando o esquema, ela vai topando todas e subindo na vida. Novas cenas de sexo e nudez em diversas locações: elevador, banheiro de avião, beco escuro, cabine telefônica, banco traseiro da limusine, essas coisas. Como personagem, faz discursos contra o assédio; denuncia o machismo e a sordidez. Porém, tem uma vida dupla, bem assanhada. “Vida dupla” o telespectador adora, concordam?

– Humm...

– No 20º capítulo, a audiência explode. Mudam o roteiro. Ela passa de balconista da loja para rival da personagem principal... Mas não é de graça: foi porque saiu para jantar com o supervisor geral de novelas. Jantar e sedução, num clima bem romântico. Cena de sexo sofisticada, vão transar numa ilha grega sob a luz da lua. Isso, é claro, desperta ciúmes das demais. Correm fofocas, invadem seu camarim, escrevem ofensas com batom no espelho. Mostraremos a guerra dos bastidores, a fogueira das vaidades, tudo pelo sucesso. Continuo?

– Bem...

– Outra mudança no roteiro. De rival da atriz principal, ela passa a figura central da trama: frequenta jantares e festas louquíssimas com a alta cúpula da emissora. Vira capa de revista. É entrevistada especial nos programas de TV. Sua carreira vai a mil, enquanto ela cheira mil carreiras. Muitas cenas de sexo. Todo mundo transa com todo mundo; altas promiscuidades! No último capítulo, ela finalmente se transforma numa diva, fica famosa, lança uma grife, ganha um programa exclusivo, está milionária, empoderada, feliz e realizada. Mas é tudo ficção, claro, isso não existe.

O diretor, lá da cabeceira, estica o pescoço, bota os óculos e tenta enxergar melhor o sujeito do fundo.

– Espera aí, cara; não te conheço. Você é da nossa equipe?

Não adiantou. O sujeito já tinha saído discretamente pela porta.

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