FERNANDO FABBRINI

Cães, patos e bodes

Quem paga a conta, bicho?

Por Da Redação
Publicado em 14 de janeiro de 2021 | 03:00
 
 

Em 1997, na região metropolitana, explodiram casos de leishmaniose visceral em cães, com riscos para humanos. O cachorro tem o papel de hospedeiro do protozoário, mas o principal vilão é o flebótomo, o inseto transmissor. Por que o tal “mosquito-palha” atacou? Fácil: porque os políticos brasileiros há décadas menosprezam o saneamento básico – “obras sem visibilidade”, segundo eles; não dão votos. Como sempre, a maioria dos eleitos ocupa-se com a) permanência no cargo b) uma obrinha aqui e ali para constar c) enriquecimento próprio e de seus partidos. Enfim, é aquela vergonha habitual, o carma nacional que pesa sobre nós, que os sustentamos.

O prefeito da época decretou que os cães da cidade deveriam ser submetidos ao teste da orelha, quando se extrai uma gota de sangue para exame. Os “positivos” seriam recolhidos e sacrificados – na marra, sem choro ou possibilidade de tratamento em casa. E assim foi feito. A cada dia chegava-nos histórias tristes e terríveis de gente desesperada, crianças traumatizadas, idosos solitários perdendo suas únicas companhias e afetos. O nosso querido Billy também foi vítima. No final, levei-o para uma eutanásia particular cara pra burro; mas, pelo menos, indolor e digna.

Estava certo o prefeito? Sim, certíssimo – mas desde que a prefeitura estendesse os exames e as capturas às vilas e favelas da cidade. Na verdade, não foram monitorados “todos” os cães. Os fiscais passaram longe dos bairros da periferia onde vivia a maior população canina sem dono, sem vacinação e fértil; um cinturão intocado de leishmaniose ao redor da capital. Portanto, sobrou para – digamos assim - os cães da classe média pagarem sozinhos o pato e gerarem “visibilidade” à medida sanitária, conferindo falsa impressão de zelo pelo bem comum.

Agora, há novos patos pagando as contas e as penas. São os comerciantes, microempresários, donos de escolas infantis e berçários, academias, comidas-a-quilo e demais negócios ditos não-essenciais. Por injustiça, são aqueles que tomaram cuidados, perderam funcionários, criaram protocolos, separaram mesas, desinfetaram tudo; exigiram álcool em gel, aferição de temperatura e máscaras de seus clientes para tentar sobreviver. E que já começaram a receber boletos do IPTU que quitarão sabe-se lá com qual dinheiro.

Após vários pedidos, líderes setoriais estiveram finalmente reunidos esta semana com secretários e representantes da prefeitura. Dados indicam que não foi o comércio o responsável pelo último pique da doença. Alguém aí acredita que o vírus esteve descansando e inofensivo no período eleitoral e nos dias das eleições, quando fomos exortados ao dever cívico pelas autoridades e interesseiros? Ou nas comemorações de fim-de-ano, bailes, baladas, pancadões, aglomerações e réveillons de famosos em praias idem?

A essa altura, já sabemos que o problema não é apenas belo-horizontino, mineiro ou nacional – mas universal, imenso e só será resolvido com vacinas confiáveis e/ou quando alcançarmos a imunidade estatística. Nesse cenário, a prefeitura não pode se fechar em decisões arrogantes. Tempos difíceis são também tempos de colaboração, diálogo e esforço conjunto – e não apenas de caçar patos ou bodes expiatórios por aí.

Em meio a tudo, um fato pitoresco. Professores, mestres e doutores acadêmicos assinaram rapidinho carta ao município apoiando o fechamento da lojinha do Zé, do armarinho da dona Maria, do boteco do Chico, sustento de milhares de famílias modestas. Nota-se que, de novo, a paixão política rasteira se sobrepôs à empatia pelos infelizes patos da vez. Mas, entendo a jogada: é oportuno, fácil e chique aplaudir um lockdown quando se tem o contracheque seguro no fim do mês, sem trabalhar, com casa, comida, cerveja e Netflix garantidas.