Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

Codinome “Faca Torta”

Publicado em: Qui, 23/02/17 - 03h00

No velho Jumbo da Iraqi Airways predomina a cor verde, em várias tonalidades. O verde é quase irritante. Ele está presente na pintura da fuselagem, na forração do interior da aeronave, no uniforme das aeromoças, nos talheres, até nos assentos sanitários. Verde, tudo verde. Talvez por isso e por sua forma oblonga o Jumbo ganhou dos brasileiros o apelido de “Pepinão”, fazendo a rota Belo Horizonte-Oriente Médio nos anos 80.

Os passageiros – poucos, espalhados pelas centenas de poltronas vazias – também já devem estar verdes de enjoo, uma vez que o avião sacudiu como um cabrito enlouquecido desde a última escala. Agora, felizmente, ele baixou o trem de pouso e os flaps, pronto para a aterrisagem no aeroporto de Bagdá.

Eu e meu companheiro de viagem – um talentoso fotógrafo mineiro – checamos tudo pela última vez, recolhendo a tralha com a qual embarcamos dias antes no Brasil. Não podemos nos esquecer de nenhuma sacola. E nem dar bandeira. A tensão é evidente. Afinal, estamos numa missão secreta em tempos de guerra num país estranho.

A guerra em questão era travada entre o Irã e o Iraque do ditador Sadam Hussein, carrasco truculento. Além de comprar caças Mirage com o dinheiro farto do petróleo, Sadam realizava diversas obras contratando empresas brasileiras. A coisa vinha bem. Porém, com a escalada da guerra, o ditador passou a gastar mais dinheiro com caças, mísseis e tanques – e a atrasar o pagamento de empreiteiras e fornecedores.

Esse cenário explicava o motivo de estarmos ali. Para todos os efeitos, nossa temporada no deserto tinha o inocente objetivo de mostrar ao mundo, em lindas imagens, a pujança – sim, usava-se esta palavra – da engenharia nacional. Entretanto, discretamente, cabia-nos a missão real. Preocupada com a possibilidade de levar um calote de dimensões saarianas, a empresa precisava documentar o que já tinha sido construído por ela. Seria uma prova imbatível caso levassem a dívida aos SPCs internacionais.

Ao receber nosso pedido de visto, o ministério dos transportes iraquiano, formado por civis, engenheiros e burocratas, deu-nos o aval e as boas-vindas. Tudo certo para o embarque? Que nada: na última hora, no aeroporto, ficamos sabendo que os militares de lá – aqueles caras que mandavam mesmo no país e disparavam mísseis – torceram os bigodes e criaram caso: “Hum! Estrangeiros aqui fotografando estradas, ferrovias e obras estratégicas? Naninha!”

E foi assim, meio clandestinos, entre o “pode” e o “não pode de jeito nenhum” que percorremos o Iraque de norte a sul, registrando silhuetas em concreto, faixas infinitas de asfalto, ferrovias brilhantes e tamareiras sob o sol, para despistar. Volta e meia eu sondava o horizonte, ouvidos atentos ao ruído de alguma viatura do exército com o pelotão de fuzilamento que nos executaria.

Após semanas de sustos e alívios, a missão estava quase cumprida. Mais relaxados, voltávamos de Mossul, no extremo norte, quando fomos parados numa barreira militar. Em volta, sacos de areia, arame farpado, canhões antiaéreos, tanques e um punhado de soldados nervosos, portando os inconfundíveis fuzis Kalashnikov.

– Passaportes, passaportes! Desçam do carro! – berraram.

“Não é miragem. Terminou a brincadeira”, pensei, mastigando os últimos pistaches de minha vida. A coisa estava séria, dava pra sentir. Nosso motorista, um egípcio que falava várias línguas e resolvia todos os problemas, batia boca com o oficial do posto, suando, visivelmente preocupado. Voltou pisando duro e enxugando a careca com um lenço:

– Estão desconfiados do fotógrafo. Pensam que é um espião iraniano...

Não era para menos. O meu parceiro fotógrafo tinha quase dois metros de altura e uma barba negra ao melhor estilo xiita. O oficial comandante esbravejou seu argumento:

– Fui da escolta do presidente brasileiro quando ele esteve aqui!...

Tinha sido Sarney, numa visita de cortesia ao Iraque no ano anterior. O oficial apontava-nos o dedo ameaçador:

– O presidente brasileiro era baixinho assim! Todo brasileiro é baixinho assim! – simulou, com a mão, a estatura. Não demorou a concluir sua lógica brilhante de contraespionagem:

– Como esse aí, grandão, pode ser brasileiro também?

O fotógrafo grandão era meu amigo Paulo Laborne, de apelido Paulão – pelo porte avantajado – e também batizado, a partir do evento, com o codinome “Faca Torta”, habilidoso espião disfarçado atrás de suas câmeras Hasselblad.

Escapamos depois de muita conversa, ponderações, juras de pé-junto e negociações. E o episódio fica registrado nesta página, antes que o vento do tempo o apague, soprando sobre as areias do deserto.

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