Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

Confissões de um anarquista

Publicado em: Qui, 10/12/15 - 02h30

Longe de mim fazer desta coluna um espaço para polêmicas envolvendo o trio da discórdia: religião, política e futebol. Até porque, na minha idade, já estou farto de blábláblás supérfluos que dividem a humanidade em grupos raivosos adeptos da visão limitada, da rigidez e da intolerância. Desiludido – no bom sentido –, ando agora à procura de coisas que unam as pessoas; quero janelas de harmonia e convergência através das quais poderemos enxergar uma paisagem menos tenebrosa para o futuro.

No entanto, além da lama no rio Doce, o meio ambiente nacional anda azedo, turvo, contaminado pelo bate-boca político. No ofício de cronista, mantenho um sensor (Inicial “s”, sempre; jamais inicial “c”) ligado no pensamento da galera. Este instrumento acurado me informa a cada instante as condições de temperatura e pressão às quais o Brasil vem sendo submetido. Impossível, então, não batucar no teclado algumas reflexões sobre a atual conjuntura, como diria o Stanislaw.
Quando eu era cabeludo e rodava o mundo de mochila nas costas, considerava-me um anarquista convicto. Esclareço aos eventuais blackblocs, punks e anonymous leitores da coluna que o sentido real da palavra foi desvirtuado. Anarquia não é um sistema absolutamente sem regras ou limites – aquela zona. Derivado do vocábulo grego anarkhos, o anarquismo original seria o desejo de alguns sonhadores de dar fim ao Estado e às autoridades constituídas. Legal, hein? Mas é difícil pacas. Exigiria que cada indivíduo tivesse maturidade e vergonha na cara, cuidasse de si mesmo com responsabilidade e respeitasse os direitos dos outros. Isto dispensaria os vigias, chefes, guias ou intermediários engravatados, cuja vocação – dizem, na maior cara de pau – é tomar conta de nós e do nosso destino.

Nos últimos tempos, com o acirramento dos embates entre coxinhas e petralhas – os dois novos partidos brasileiros –, perguntam-me, às vezes, sobre minha posição política. Acho gozado como certas pessoas não sossegam até enquadrarem você dentro de uma categoria que conheçam. Para elas, você deve ser algum “ista”, como se a alma humana – fluida e misteriosa – pudesse ser contida nos limites de uma caixinha rotulada. Se você não é A, implica, obrigatoriamente, que seja B. Quanta asneira! Assim, quando me interrogam, provoco: “sou um antigo anarquista ex-querdista de centro que virou direitista.” É uma brincadeira, um jogo divertido com as palavras, estas colegas de trabalho.

Posso dizer que sou um ex-querdista porque vivi intensamente os anos de chumbo, a pedreira. E a “esquerda”, assim como eu, lutava contra a ditadura. Daí, flertamos. Conspirei, fugi da polícia e participei das revoltas artísticas e filosóficas de minha geração, agitando a bandeira da liberdade. Veio o fim da ditadura e supus que novos ares oxigenariam o país. Sejam bem-vindas as mudanças! Por exclusão – mesmo achando os barbudos meio caretas e arrogantes –, votei no partido que pregava a ética e o fim das maracutaias, lembram-se dele?

Adiantou nada: minha pobre esperança aguarda assentada nas margens plácidas, entediada com a mesmice e nauseada com a roubalheira. E, de velha, minha liberdade acabou meio ranzinza. Desenvolveu, por exemplo, uma antipatia profunda por encamisados de qualquer orientação, natureza ou habitat. Botou camisa e bonezinho igual? Ah! Minha liberdade tem boa memória: abre o livro de história e aponta a foto amarelada da juventude hitlerista uniformizada. E a foto dos integralistas, camisas verdes. E a dos nazistas, marrons. Dos fascistas, com as negras. Dos maoístas, estrelinhas vermelhas no boné. Dos ditos sem-terra, eviscerando vacas prenhes em fazendas da “elite” como “protesto”, meu Deus. E ainda aquelas do ditador numa camisa ridícula nas cores de seu país, como se estilo brega-patriota superasse as filas para comprar papel higiênico ou a prisão de – até agora – 78 opositores do regime, segundo a Anistia Internacional.
Na pátria amada vemos a corja unicamente interessada em manter seus quintais, a boa vida e os privilégios lícitos, além dos ilícitos. Para enganar a plateia, alardeiam seus vagos princípios ideológicos como quem veste uma camisa da torcida. Porém, assim como as estrelas do futebol, podem trocar de time a qualquer momento, dependendo apenas do valor da proposta e das condições do gramado.

Em Portugal, brincam que “governos de esquerda ou de direita referem-se apenas à mão usada para roubar”. Acho ótima a frase. Resta-me, portanto, o centro, buscando o equilíbrio e mantendo a mente alerta. E consolo-me: este anarquista-ex-querdista-centro-direitista não está sozinho. Nas rodas de papo e na internet encontro cada vez mais aqueles que, escaldados como eu, não se iludem com essas duas vias enganosas que conduzem ao mesmo desencanto.

Ah, sim, quase me esqueço: por que virei direitista? É só para fechar a piada: acabei membro da turma que torce pelo dia em que este país vai andar... direito. Piada fraca e sem graça, eu sei. Mas é a melhor que está tendo, como dizem.

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