Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

Deixa o lixo aí mesmo

Publicado em: Qui, 17/05/18 - 03h00

Se de um lado me incomoda bastante ver lixo jogado nas calçadas e sarjetas, tenho – para compensar – uma simpatia especial pelos garis e lixeiros. Haja disposição e coragem para recolher a imundície alheia, correndo atrás dos caminhões.

Meus passeios matinais caninos coincidem com os horários da turma da varrição. Sempre puxo um papo com o pessoal – enquanto me desvio dos montes de sujeira do trajeto. Garis têm emprego garantido, o volume de lixo na rua não para de crescer. Isso porque os cidadãos não só já se acostumaram com a porcaria onipresente como contribuem, generosamente, com suas cotas diárias de descaso.

No planejamento da limpeza urbana há curiosidades. Por exemplo: a avenida do Contorno, aqui ao lado, é varrida diariamente, segundo me informaram. No entanto, muitas ruas da Serra que nela desembocam só são varridas a cada quinze dias (ou mais que isso, ando checando). Muito esquisito. Seria como cuidar de um rio maior e esquecer de seus afluentes. Desse jeito, baratas e escorpiões não se preocupam. Após a passagem dos varredores na avenida, basta uma corridinha de alguns metros em direção à rua ao lado para sentirem-se novamente em casa.

O lixo e o descaso foram os protagonistas das medidas adotadas pela prefeitura de Nova York para recuperar bairros degradados e com alto índice de criminalidade. Tudo começa com a limpeza, segundo a famosa Teoria das Janelas Quebradas, da Universidade de Stanford, uma experiência de psicologia social memorável.

Foi assim: estacionaram dois carros idênticos, da mesma marca, modelo e cor, em dois locais. Um no Bronx, zona pobre e conflituosa de Nova York; outro em Palo Alto, zona rica da Califórnia. Uma equipe da universidade passou a acompanhar diariamente os acontecimentos.

O carro abandonado no Bronx foi vandalizado em poucas horas. Roubaram primeiro as rodas; depois os espelhos, o rádio e até o motor. Peças e componentes aproveitáveis sumiram. O que não deu para levar foi destruído, pixado, quebrado. Passaram a jogar lixo lá também. (Lembrei-me de uma de minhas primeiras crônicas, quando denunciei a carcaça do Ford Del Rey transformada em depósito de lixo numa rua vizinha. Tanto insisti que, um dia, ela sumiu. As crônicas serviram para isso, pelo menos).

A experiência prosseguiu. Na Califórnia, o carro abandonado na tranquila Palo Alto mantinha-se intacto, semanas a fio. Quando o carro do Bronx já estava aos cacos, os pesquisadores quebraram, de propósito, um vidro da janela do automóvel de Palo Alto. Não deu outra: imediatamente vieram os furtos, violências e vandalismos que reduziram o veículo à sucata, deixando-o na mesma situação do carro largado no Bronx.

Deveras intrigante, hein? Por qual razão um simples vidro quebrado no carro abandonado, num bairro considerado seguro, estimulara a selvageria? De uma coisa os pesquisadores tinham certeza: não era devido à pobreza; porém, a algo relacionado à psicologia humana e relações sociais. Veio a resposta: perceberam, ao final, que um vidro quebrado num automóvel passa a ideia de deterioração, de desinteresse, de descaso. Rompe os chamados “códigos de convivência”, faz supor que a lei, normas ou regras não existem naquele território. Um simples vidro quebrado convida ao “vale-tudo”, e cada novo ataque reafirma e multiplica essa ideia. A turma de Stanford concluiu, com segurança, que o delito é maior nas áreas onde o descuido, a sujeira e a desordem são maiores.

O mesmo acontece com o lixo. Faça sua própria pesquisa: jogue um inocente copinho plástico no canteiro aí perto de casa. Daí a pouco um sujeito depositará um marmitex com sobras de feijão. Uma senhora, de passagem, deixará cair no local uma fralda descartável cheia de cocô. Em seguida, virão sapatos velhos, bandejinhas de isopor, cascas de mexerica e restos de melancia. Pronto: acaba de nascer mais um depósito a céu aberto.

Suspeito que há coisa mais séria por trás do lixo complacente: se o povo aceita a sujeira das ruas como “normal”, ou “no Brasil é assim mesmo”, com toda certeza aceitará também, no seu íntimo, outras sujeiras contemporâneas – a violência, o crime, o descaso, a roubalheira dos políticos, o preconceito e tudo mais.

Infelizmente, para muita gente, é melhor que seja assim. Então, deixa o lixo aí mesmo, tá?

---

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo mineiro, profissional e de qualidade. Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar.

Siga O TEMPO no Facebook, no Twitter e no Instagram. Ajude a aumentar a nossa comunidade.