FERNANDO FABBRINI

Habilidade zero

Cada vez menos pessoas fazem um pouco de tudo

Por Da Redação
Publicado em 08 de outubro de 2020 | 03:00
 
 

A informação veio das autoescolas: agora, menos jovens se interessam em aprender a dirigir, encarar os exames dos Detrans e a habilitação. É mais uma mudança sintomática nos hábitos das novas gerações. Antigamente, fazer 18 anos e tirar a carteira de motorista constituía um rito de passagem para a vida adulta. Hoje, jovens preferem os aplicativos.

De fato, o táxi é muito mais prático, com a vantagem de reduzir - em tese - o número de carros na cidade, enchendo-a de fumaça e emperrando o trânsito. Porém, por trás há uma sutileza curiosa: a progressiva diminuição das habilidades do indivíduo moderno e a delegação das tarefas e responsabilidades aos outros.

A geração acostumada ao conforto do celular – pedir comida, guiar-se pelas ruas, moverem-se etc. vai se iludindo numa aparente autonomia, presa, porém, à disponibilidade (e aos custos) dos serviços da telinha e seus intermediários. Quantas antigas e simples habilidades vão desaparecendo? Guiar um automóvel? Pregar um botão? Fritar um ovo? Mudar uma lâmpada? Trocar um pneu, um botijão de gás? Desentupir uma pia?

Meu pai adorava música. Certa tarde, parou diante de uma vitrine e viu um instrumento diferente: era um banjo. Apaixonou-se pelo som metálico e original das cordas. Mas, o tal banjo era importado, caro demais, muito além de seu modesto salário. Não dá pra comprar? Ué, construa um. Meu pai fez amizade com o dono e durante semanas repetiu a visita à loja munido de uma pequena régua. Apoiava o banjo no balcão, estudava-o, tirava medidas de largura, espessura, distância dos trastes, calibre dos parafusos. À noite, com ferramentas improvisadas, ia fabricando o seu. Nascia um “luthier” autodidata.

- Fulano não sabe nem bater um prego...

Esta frase, ouvida tantas vezes nas conversas dos homens da família, dividia a humanidade em dois grupos: o dos bípedes autossuficientes – aqueles aptos a substituir uma tomada elétrica, por exemplo – e o dos demais incapazes, obrigados a gastar dinheiro diante de uma simples torneira vazando.

O “chamar alguém para fazer” virou hábito. Uma moça denominada “organizadora profissional” agora vai até às casas e – nossa! – “arruma” prateleiras, armários, guarda-roupas. Pelo visto, ninguém mais deve estar sabendo solucionar sozinho o gravíssimo problema de uma gaveta bagunçada. Os “maridos de aluguel” vivem com agendas lotadas, consertando, instalando, furando paredes por aí.

Nas escolas primárias da Europa foi reintroduzida a matéria “trabalhos manuais”. Crianças aprendem a costurar; a passar roupa; fazem molduras ou maquetes simples; colam sucata, lambuzam-se com tinta, inventam nas três dimensões. Usando somente as mãos e os olhos como instrumentos, a ideia é ampliar habilidades, criando ambiente encorajador para um futuro engenheiro, cientista ou artista. Porém, principalmente, busca-se resgatar o “tempo real humano”. Os educadores já percebem sinais preocupantes dos danos do “virtual-eletrônico” e seu temível comparsa, o “tempo acelerado digital”. São os vilões responsáveis por crianças hiperativas, incapazes de se assentarem na cadeira, focadas numa atividade sem efeitos especiais. Ou crianças pouco sociáveis, prisioneiras do mundo fantasioso das telas de seus celulares. Vê-se meninada incapaz de conviver com obstáculos, com a frustração de perder horas de trabalho por conta de um erro – aceitá-lo, entendê-lo, aprender e recomeçar. A vida – refiro-me àquela real - tem muito disso; exige prática, paciência, determinação e mãos na massa.

Quando o homem das cavernas aprendeu a fazer fogo, tudo mudou. No sentido inverso, o homem digital se torna cada vez menos capaz de se virar sozinho. O “sapiens” vai sendo extinto por conta de preguiça, passividade e indolência.