Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

Meia-lua mística

Publicado em: Qui, 22/06/17 - 03h00

Era uma bela manhã de janeiro de 2010, quase meio-dia. Dia limpo, céu azul, prometendo calor para o resto da tarde. Eu acabara de estacionar numa rua tranquila do bairro Cruzeiro e descia carregado de compras de supermercado. O carro, praticamente zero, tinha menos de três meses de uso.

Distribuí as sacolas ao longo do braço e apertei o botão do alarme – pim-pim! Quando me preparava para abrir o portão do prédio, senti alguma coisa encostando-me nas costelas. Era um revólver calibre 38, na mão de um homem de boné e óculos escuros. Falou baixinho, mas o suficiente para meus ouvidos surpresos:

– Quero o carro! Senão, atiro!

Assalto – aquela coisa que a gente acha que acontece com os outros, nunca conosco. Um comparsa dava cobertura na esquina; mãos enfiadas na cintura e olhos atentos à cena principal. Por incrível que pareça – ou por obra de meus anjos da guarda, de santo Antônio e são Francisco, fiéis protetores deste cronista –, baixou-me uma calma inexplicável. Fiquei absolutamente sereno, absurdamente tranquilo.
– Tudo bem – disse. Vou pegar a chave no bolso; o carro está trancado.

– Não pega o celular! Te mato!

Eu, calmo. Ele, nervoso. O revolver tremia.

– Celular não, rapaz, relaxa. A chave tá no bolso, ué. Aguenta aí.

Evitando movimentos bruscos, botei as sacolas no chão, peguei a chave e entreguei-a ao sujeito. Antes de as pernas tremerem, falei com meus botões: “vai embora, some com esse carro, não quero vê-lo nunca mais”. E assim foi. Perda total. (Teve a parte boa. Em menos de um mês a seguradora pagou-me o valor da nota fiscal do carro zero – com todos os centavos).

Desde esse episódio assustador tornei-me pedestre por opção. Na verdade, já usava muito pouco o carro, cumprida a fase de pai-motorista que se alongou por duas décadas. Veio-me, então, a ideia de experimentar viver sem automóvel por uns tempos. Foi tão bom que nunca mais voltei atrás.

Perdi alguns quilinhos, melhorei minha forma física. Ando muito a pé e de ônibus. Ou, se estou com pressa, pego táxi, Uber, Cabify, esses troços. Em casos raríssimos, alugo o carro mais barato da locadora, rodo por 24 horas e devolvo-o sujo, de preferência. Em matéria de veículo automotor, para mim agora vale o usufruto, jamais a posse. E com o tempo vieram ganhos extras: a condição de pedestre e usuário de coletivos é muito rica em novas experiências.

Exemplo: andava num ônibus, distraído com a paisagem urbana, quando a garota no banco de trás iniciou a conversa pelo celular. Falava alto; impossível não ouvi-la:

– Mãe, fui lá nele, gostei. E é mais barato, quase a metade daquele outro...

Referia-se a um professor particular? Um cabeleireiro? Um maquiador?

– Mas estou na maior dúvida, mãe! Nem dormi de noite... O que você acha?

Se não dormiu, devia ser assunto sério. A mãe, cúmplice, cochichou zumbidos eletrônicos. A garota continuou:

– Pois é, não sei se faço a árvore nascendo da terra... Ele sugeriu que a árvore brotasse de uma meia-lua mística, achei legal também. Aí fiquei sem saber. Da terra ou da meia-lua mística? Ai, mãe! Me ajuda, tô tão nervosa!

Novo silêncio, enquanto a mãe ponderava sobre tão delicada questão. Tentei também, num extenuante exercício de imaginação, avaliar as alternativas do enigmático impasse: terra ou meia-lua mística?

– Liguei pro Rafa, expliquei... Foi pior, mãe! Homem não entende nada, só complica, sabia? E ainda tem o negócio da letra verde ou vermelha, e os duendes...

Pobre mãe, pobre Rafa, seres inocentes envolvidos num assunto urgente, vital e dramático! Nervos à flor da pele, ela finalmente pareceu decidida:

– Olha, mãe, vou acabar fazendo do meu jeito mesmo, tá?

Gesticulando no vazio, junto à minha nuca – senti o ventinho –, proferiu a sentença:

– A árvore nascendo da terra; os ramos alcançando as estrelas; as letras verdes e os raios. Depois, boto a meia-lua mística embaixo e os duendes segurando as flores. Vai ficar lindo, né, mãe?

Creio que a mãe incentivou a configuração final, incluindo os raios, as letras verdes e os duendes. Ufa! A paz desceu dos céus. Ato contínuo, a menina ligou pro Rafa:

– Amor, resolvi; tô indo fazer a tatuagem. De noite te mostro, tá, querido? 

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