FERNANDO FABBRINI

Meu transtorno obsessivo

Redação O Tempo

Por Da Redação
Publicado em 09 de novembro de 2017 | 03:00
 
 
HÉLVIO

Linda tarde de sol. Pois vinha eu caminhando pela avenida, por acaso logo atrás da moça com o sundae. Era um daqueles sundaes vermelhos, talvez sabor morango, sorvete submerso em calda espessa e perfumada. Notei que ela conversava animada com uma amiga quando raspou o fundo do copinho, levou à boca a colherinha com o derradeiro conteúdo e, displicente, atirou o conjunto na calçada. Isso: ali, no chão. Jogou no passeio, bem a minha frente. Não tive escolha: no embalo, abaixei-me e peguei aquela coisa grudenta e repugnante. Apertei o passo. Com a outra mão, livre e ainda limpa, cutuquei o ombro da moça gentilmente e disse, assumindo a personalidade momentânea de tio legal:

– Filha, você deixou cair isso. Acho que é seu.

Ela olhou-me espantadíssima. Em vez de um tio legal, creio que a pobrezinha supôs estar diante de um tio louco. Preferiu não correr riscos. Por via das dúvidas, recebeu de volta a inusitada encomenda e, dois passos à frente, depositou-a numa lixeira providencial, olhando-me de través.

Nesta semana teve outra ótima. Saindo de casa, reparei em dois copos plásticos com restos de café deixados na calçada, bem diante de nosso portão. Automaticamente abaixei-me, recolhi o lixo e atravessei a rua para jogá-los na lixeira do outro lado. Uma senhora, esperando o ônibus no ponto, acompanhou minha obra e, quase gritando, perguntou-me:

– Moço, o senhor tem TOC com sujeira?

Ri demais. Devo ter, sim, Transtorno Obsessivo Compulsivo com sujeira. Dentre todos os mistérios da alma humana, fico especialmente intrigado com a complexa relação homem-lixo-dejetos. Isso inclui, por exemplo, fazer xixi sem pontaria. Posso entender que muitos homens não têm amplo domínio sobre o referido membro em determinadas situações críticas. Mas, sob condições normais de temperatura e pressão, apontá-lo com um mínimo de perícia não é tarefa complexa, convenhamos. Há também o clássico descuido de não apertar a descarga nos banheiros públicos. E a capacidade de conviver pacificamente com um monte de porcaria na frente da própria casa, na esquina ao lado, na pracinha do bairro.

Há casos mais sérios e incuráveis de sujeira obsessiva, como os daqueles que definitivamente não conseguem coabitar um ambiente limpo, agradável e bonito. Uma fachada recém-pintada de branco, um canteiro bem-cuidado, um portão brilhando – tudo isso os agride de forma brutal. Daí, extremamente incomodados, compram latas de spray e tornam o habitat mais condizente com seus padrões estéticos sofisticados. Rabiscos, signos, códigos, delírios gráficos, feiura. Pronto: com a mesma sensação resultante de outros momentos escatológicos, fazem a coisa com toda força e sentem-se aliviados. (Vez ou outra surge um acadêmico justificando e apoiando tal atividade como “um novo olhar pictórico e de denúncia contra uma sociedade perversa que exclui as formas populares de livre expressão”. Ou seja: para certos intelectuais, pimenta naquele lugar e pichação na parede dos outros é refresco).

Fosse eu um sociólogo, psicólogo ou coisa que o valha, já teria pronta minha teoria comportamental para uso em situações sanitárias do gênero. Desconfio que tudo gira em torno da incapacidade de certos compatriotas de se sentirem donos. Tirando as nossas residências – territórios tradicionalmente privados –, não temos uma relação de propriedade direta com o resto do chão que pisamos, o chamado espaço público.

No Brasil, ainda e infelizmente, o espaço público é uma terra de ninguém, sempre na mão dos outros. Além dos marginais clássicos – vândalos, ladrões de fios elétricos, de tampas de bueiro e de bancos de jardim –, os outros são aqueles bandidos pós-modernos, certos políticos profissionais e assemelhados. É uma imensa legião de aproveitadores legalizados que vive às custas do nosso triste descaso, da lamentável alienação do “isso não é comigo”. Ora: aquele que discretamente larga o saco preto em qualquer canto, à mercê de cachorros vira-latas e outras criaturas da noite, com certeza não considera aquela rua como sua. O mesmo se aplica à moça que joga o sorvete na calçada. Para esses, a rua é do governo – então, não precisam tomar conta. Que pena!

Se tivesse chance, o tio doido diria à moça do sundae que, se essa rua fosse dela, também seria dela o bairro, a cidade, o país, o continente, os mares, as montanhas, os rios, as florestas e o planeta inteiro. Mas acho que ela não iria captar bem o espírito da coisa.