FERNANDO FABBRINI

Nós, invisíveis

Redação O Tempo

Por Da Redação
Publicado em 27 de julho de 2017 | 04:30
 
 
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Alerta! Há algo de muito sério acontecendo no ambiente urbano nacional. Como num filme de science fiction, nós – os humanos brasileiros comuns – estamos nos tornando invisíveis, pouco a pouco. Será que ninguém está percebendo isso?

Andando pelas ruas da cidade, devemos agora – na vulnerável condição de invisíveis – dedicar extremo cuidado nas faixas de pedestres. Os motoristas – apressados, coitados – não nos enxergam cruzando a zebra pintada no asfalto. Falando ao celular ou ouvindo música, não podem ser responsabilizados caso nos atinjam com suas potentes caminhonetes brancas de vidro escuro.

Somos invisíveis, ué. Perigo maior corremos também nas saídas e nas entradas de estacionamentos. Como ali existem placas luminosas onde se lê “cuidado, veículos!” piscando e zumbindo, fiquemos avisados. Não podemos reclamar caso sejamos atirados no meio da rua por uma bela garota rica guiando seu charmoso Mini-Cooper. Venho perguntando-se amiúde se a mensagem correta nos tais avisos das cancelas não deveria ser, ao contrário, “Cuidado, pessoas!” voltada diretamente às fuças dos fogosos motoristas.

Uma amiga, senhora distinta e elegante, pagou recentemente o preço da invisibilidade num táxi. O motorista, rapaz de gosto refinado, permaneceu toda a viagem com o rádio ligado na sintonia de um clássico do funk tupiniquim, onde se ouvia o refrão assaz elaborado rimando “calcinha” e “bundinha”. Afinal, ele pensava estar sozinho. E minha amiga ali, caladinha no banco de trás. Quem mandou ser invisível?

Outro exemplo: você entra na lanchonete para tomar um café com pão de queijo na condição de cliente, elemento essencial no sistema capitalista. A balconista está conversando com a colega, contando as peripécias do Giovanilton, o namorado, que andou paquerando a Jéssica, amiga, até então, bem sob os olhos dela – aquele safado. Ouvidos atentos à narrativa, você pega o roteiro da história e já está concordando que o Giovanilton é, de fato, um sem-vergonha, quando se lembra de que chegou ali apenas no intuito de fazer um lanche. Para tentar chamar a atenção da balconista, dirige a ela um tímido sorriso – mas a moça, concentrada na lavação de copos e no colóquio acima citado, continua lhe ignorando. Claro: você é invisível, esqueceu? Minutos depois, concluído o desabafo sentimental, ela finalmente nota os contornos de um vulto do lado oposto do balcão. Ah, sim! É você, seu ectoplasma! A moça, então, empina o nariz na direção de seu vulto, o que significa: “Tá querendo o quê? Fala logo!”. Resta ao amigo fazer um esforço para sair momentaneamente do estado de invisibilidade e fazer o pedido – antes de se desvanecer no ar junto com aroma de café.

Situações semelhantes vêm acontecendo comigo em certas filas de supermercado – e, segundo relatos, alguns vizinhos vêm passando pelo mesmo incômodo. Sem um mísero bom dia, entediadas e alheias a nossa presença – invisível – as moças do caixa começam a arrastar nossas compras sob os olhos da luz misteriosa que lê os códigos de barras. Fosse eu um ser visível ou dotado de um código, creio que à minha passagem apareceria na telinha não um preço, mas uma mensagem de texto assim: Olá, Leisiane! (vi seu nome no crachá). Tudo beleza? Sou um cliente, aquele cara que escolheu o supermercado em que você trabalha para fazer as compras. Reconheço que deve ser uma chatice ficar assentada no caixa horas a fio, aguentar gente mal-educada e falta de troco constante. Eu lhe dei bom dia, sorri, puxei conversa, mas como ando em estado avançado de invisibilidade, é compreensível que você tenha me devolvido apenas um monossílabo ou um grunhido lacônico. Perdão, Leisiane!

Sem dúvida, a invisibilidade tem sintomas de ser um fenômeno tipicamente nacional. Por falar em supermercados, vejam esta: um amigo, de passeio pelo Japão, custou a entender o que uma simpática velhinha tentava lhe dizer. Ela estacionara o carrinho no corredor e inclinava a cabeça seguidamente, sorrindo. Nada demais: a senhorinha aguardava passagem, após pedir uma gentil permissão para trafegar entre as prateleiras de miojos, e meu amigo, absorto na escolha do macarrão.

Pensando melhor... E se essa tal invisibilidade for, ao contrário, um caso assustador de cegueira coletiva de dimensões continentais? Isso é grave, doutor?